sábado, 26 de maio de 2012

Contextualização da atuação dos diversos atores sociais no início da República brasileira através da análise da obra de José Murilo de Carvalho


Paulo Luiz de Mendonça*


José Murilo de Carvalho, um dos historiadores brasileiros mais visitados, através da obra Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi, em um misto de respostas, questionamentos e lacunas, procura analisar o papel popular em diversos níveis no início da República brasileira.   Ao longo do texto, o povo, que, segundo Aristides Lobo, assistira a tudo bestializado[i] é mostrado por Carvalho em alguns momentos como não sendo tão bestializado assim.                  Interesses dos mais variados, são apresentados pelo autor   em   diversos    exemplos.       Afirmações do tipo “O Brasil não tem povo”[ii], de Couty, ou a do embaixador português antes do advento da  República, quando afirmou que “Está a cidade do Rio de Janeiro cheia de gatunos e malfeitores de todas as espécies[iii]  podem ser atribuídas a um olhar estrangeiro equivocado e preconceituoso sobre o país, porém devemos analisar mais detidamente tais afirmações pois “É preciso que nos perguntemos pelo sentido de suas palavras, pela realidade que lhes possa ter servido de  referência.”[iv]
            
Durante as aulas da disciplina História do Brasil 7,  houve certa polêmica sobre os diversos papéis do povo na República brasileira, e das possíveis interpretações que foram dadas, e as que deixaram de ser, por Carvalho.      Tentarei contextualizar essas diferentes visões sobre a obra e a minha visão atual sobre as condições de diversas camadas de população em nosso país.
           Em História, conforme já nos foi repassado ao longo do curso, não existem explicações simples.    A simplificação de um processo histórico frequentemente pode desembocar em visões maniqueístas ou de vitimização.    José Murilo de Carvalho busca em sua obra questionar o “problema do relacionamento entre o cidadão e o Estado, o cidadão e o sistema político, o cidadão e a própria atividade política.[v]  pois “é mais fecundo ver as relações entre o cidadão e o Estado como uma via de mão dupla, embora não necessariamente equilibrada.”[vi]   

             No primeiro capítulo (O Rio de Janeiro e a República), o autor mostra o contexto vivido pela cidade do Rio de Janeiro nos primeiros anos da República brasileira.     Mostra as alterações quantitativas ocorridas na cidade, como sinais das mudanças que estavam ocorrendo.    Crescimento populacional, com um grande incremento de imigrantes e migrantes; acúmulo de pessoas em ocupações mal remuneradas ou sem ocupação fixa; acúmulo de classes de pessoas “perigosas ou potencialmente perigosas”; problemas de habitação; de abastecimento de água; de saneamento e de higiene; violentos surtos epidemiológicos, notadamente em 1891 (varíola, febre amarela, malária e tuberculose);  altas taxas de mortalidade, são alguns dos grandes problemas mostrados pelo autor.        A abolição da escravidão, segundo o autor, foi responsável por outro grande conjunto de problemas (econômicos) que atingiram a jovem República.   Emissão excessiva de moeda, especulação, aumento  de preços, da inflação, do custo vida e da imigração formavam um contexto onde se “acirrava a luta pelos escassos empregos disponíveis.”[vii]   O movimento jacobino, resultante dessa conjuntura, iria perdurar na maior parte da primeira   década                        republicana.      Politicamente, o autor caracteriza o Rio de Janeiro como a cidade que catalisou as atenções do país pelo fato da implantação do novo regime ter sido desenrolado totalmente na capital; como a cidade onde os militares, em lutas intestinas pelo poder, queriam ocupar os espaços que lhes tinham sido negados após o primeiro reinado; e onde parte dos operários acreditaram nas promessas do novo regime, desembocando em um contexto onde “Políticos republicanos e monarquistas assinavam manifestos, envolviam-se em conspirações, planejavam golpes.”[viii]     O “porre ideológico” dessa jovem República colocava em rota de colisão liberais, positivistas, socialistas, anarquistas e monarquistas.  Apesar da confusão ideológica, o autor cita a importância que alguns intelectuais tiveram em relação ao novo regime.    José do Patrocínio, Olavo Bilac, Luís Murat e Pardal Mallet  representavam uma corrente de pensamento otimista com relação à República.  Interesses divergentes entre os intelectuais e o governo resultariam em repressão aos primeiros.    O autor também tenta avaliar o impacto da proclamação da República ao nível das mentalidades.    A sensação de liberdade por parte das elites, a absorção do espírito do capitalismo desacompanhado da ética protestante,  a quebra dos valores antigos, a frouxidão dos costumes, “o engano, a sedução, a exploração, a mutreta, o tribofe,”[ix] não esconderam a repressão governamental desses primeiros tempos.      Repressão seletiva, dado os favorecimentos a determinados setores.     “O jogo, as apostas foram reprimidos, e tentou-se acabar com o entrudo.    Porém a jogatina da bolsa, favorecida pelo governo provisório, tinha dado o tom.   Apesar da ação das autoridades, quando havia tal ação, abriram-se cassinos, casas de corrida, frontões, belódromos, que vieram juntar-se ao tradicional jogo do bicho, ou dos bichos, como se dizia na época, e às casas clandestinas de jogo.”[x]
           Relações promíscuas entre agentes do Estado e a contravenção penal, alçada a condição de crime organizado, representam uma óbvia permanência da primeira República, ou das “entranhas da República”, utilizando uma expressão de Carvalho.    É claro que o Rio de Janeiro, mesmo durante a República Velha, não pode ser considerado como a totalidade de um país com uma imensa diversidade cultural, política, econômica, geográfica e histórica como o Brasil, porém pode representar determinados aspectos que permanecem em nossa atual cultura política (ou culturas políticas).    Por exemplo, eufemismos, utilizados pela atual presidente da República, como “mal feitos”, referindo-se a corrupção crônica que assola o país em todos os níveis,  ou “faxina”, para indicar supostas ações anti-corrupção, servem para esconder, de uma massa ou desinteressada por política ou com algum interesse mesclado com uma sensação de impotência, articulações feitas por essa mesma presidente para bloquear, por exemplo, a atual CPI da “crista da onda”, que investiga (?) justamente as relações de agentes públicos com um... bicheiro !     Bloqueio que já está surtindo efeito com a blindagem de governadores suspeitos de corrupção e principalmente de uma empresa (Delta Construções) que “coincidentemente” foi bastante generosa com a campanha do então candidato Lula à presidência da República em 2002.     Ex-presidente Lula que ao invés de terem investigadas suas ligações com os financiadores de campanha, foi “agraciado” recentemente com o título de doutor honoris causa por cinco universidades cariocas que, confundem o fato de que serem instituições públicas com o de serem subservientes ao poder.   Em um país onde o crime de enriquecimento ilícito não é tipificado em seu Código Penal, a “faxina” tão preconizada pela presidente Dilma apresenta-se como uma medida inócua e confiante na falta de capacidade do povo brasileiro em reagir à altura a tais desmandos.    Essas profundas desigualdades desembocam “...nos diferentes privilégios que alguns usufruem em detrimento dos outros, como o de serem mais ricos, mais honrados, mais poderosos que eles, ou mesmo o de se fazerem obedecer por eles.”[xi]
           É claro que a afirmação “o grosso da população não se interessa por política” ontem e hoje devem ser devidamente contextualizadas porém seria essa uma visão pura e simplesmente preconceituosa ?     Seria esse desinteresse provocado apenas pelo fato do povo estar demasiadamente preocupado com a luta pela sobrevivência e de não “ter tempo” e nem condições de se  organizarem  como  sociedade civil para chamarem à responsabilidade os seus líderes políticos ?    Seria o generalizado clima de corrupção, operacionalizado pelo “jeitinho”, tido como origem apenas as profundas desigualdades existentes no Brasil, pois “...não há no Brasil quem não conheça a malandragem, que não é só um tipo de ação concreta situada entre a lei e a plena desonestidade, mas também, e sobretudo, é uma possibilidade de proceder socialmente, um modo tipicamente brasileiro de cumprir ordens absurdas, uma forma ou estilo de conciliar ordens impossíveis de serem cumpridas com situações específicas”[xii] ou também seria  “ um modo ambíguo de burlar as leis e as normas sociais mais gerais.”[xiii] ?
          A corrupção no Brasil é objeto de estudo em diversas áreas.  No período colonial, a venalidade dos cargos administrativos, o nepotismo, o enriquecimento através da junção do interesse público ao privado, podem serem interpretados como não tendo a mesma conotação com a corrupção atual, segundo o estudo das mentalidades e da tentativa de não anacronismo, porém, ao mesmo tempo são indicativos de práticas que foram aperfeiçoadas com o desenvolvimento de novas formas de se utilizar as instituições continuadas durante o Império e a República, se bem que para José Murilo de Carvalho, o Império destoava dos dois outros períodos históricos por apresentar “...cumprimento das leis, o respeito pelo dinheiro público e a liberdade de expressão...”[xiv]     O professor Severino Vicente, referindo-se à época colonial, citando o livro de Paulo Cavalcante,   Negócios de Trapaça, afirma que o autor “...nos  conta dos Caminhos descaminhos na América Portuguesa na primeira metade do século XVIII. Ele nos conta como a trapaça, a capacidade de enganar o erário só é possível com a aceitação dessas ações pelos responsáveis pela coleta e pela administração da fazenda real.   Acabei de ler o livro neste dia 28 de dezembro, o mesmo dia em que o Supremo Tribunal concedeu o retorno à liberdade ao dono do Banco de Santos, recentemente condenado a duas décadas de prisão. É como se estivessêmos  fazendo parte do livro de Paulo.  O livro é extremamente documentado, e serve como um pequeno curso sobre o cotidiano das relações entre o fisco e os cidadãos, especialmente aqueles mais próximos das chaves das burras do Estado, ali, nos caminhos e descaminhos entre a região das Gerais, o Rio de Janeiro e a Metrópole. Creio que este livro, a tese de doutorado de Paulo Cavalcante, será uma leitura obrigatória àqueles que pretendam conhecer os meandros formadores do Estado brasileiro e de certos hábitos ainda cultivados por certa ¨elite¨ que desde então tem vivido próxima à rua da moeda.”[xv]
             Como registrado no início desse trabalho, o historiador deve ter cuidado com a análise da atuação popular nos processos históricos.     A despeito de visões preconceituosas à época, da mesma forma o povo demonstrava sua identidade de maneiras diversas, também tinha (e ainda tem) sua parcela de responsabilidade na  formação do país.   É claro que deve-se levar em consideração todo um processo de formação das camadas populares, todas as injustiças (“No Brasil, em casos de revoltas populares, nunca havia processo contra o grosso dos presos.”)[xvi]; a falta de acesso à saúde, à educação, ao transporte público, às mínimas condições de se viver com dignidade.     Como diz o professor Marcus Carvalho, o povo brasileiro sempre foi “capado e recapado”.     Hoje em dia é muito fácil, por exemplo, criticar o fato de que no Quilombo dos Palmares havia escravos, sem se levar em consideração que, para a mentalidade da época, o problema não era ter escravos, mas ser escravo no contexto histórico vigente.     É fácil também criticar os “traidores” da Guerra dos Cabanos, índios e matutos, que participaram da captura de seus antigos companheiros de luta, os escravos “papa-méis’, e que os mesmos “...interessados nas gratificações delas [das capturas] participassem com entusiasmo.”[xvii]sem se levar em consideração suas condições extremas vividas durante anos escondidos nas matas, numa condição de miséria tal que “Impressionavam a todos o estado de quase nudez em que se achavam os cabanos, havendo até mulheres que não saíam das matas por não possuírem roupas que lhes cobrissem o corpo.”[xviii]   Parece óbvio que grande parte das atitudes são condicionamentos históricos da imensa exclusão do povo dos direitos mais elementares e das exigências, muitas vezes absurdas, por parte dos governantes, pois, por exemplo, Como é que se faz diante de um requerimento que está sempre errado? Ou diante de um prazo que já se esgotou e conduz a uma multa automática que não foi divulgada de modo apropriado pela autoridade pública? Ou de uma taxação injusta e abusiva que o Governo novamente decidiu instituir de modo drástico e sem consulta?”[xix]   Porém, em todas as épocas deve-se verificar o contexto vivido e as ações afirmativas realizadas pelos diferentes atores sociais, levando-se em consideração suas condições, na dificílima tentativa de conferir-lhes o exato nível de responsabilidade e de não se ter, conforme já registrei, leituras simplistas e meniqueístas.      Atualmente, acredito, o registro de um posicionamento meramente passivo, por parte do povo, soa como uma historiografia um tanto quanto superficial, que pouco contribui para a construção do conhecimento histórico.     De maneira mais clara, o povo também é corrupto.    E o pior, essa corrupção é apropriada de maneira hábil pelas elites para os seus      interesses.      É óbvio que existem níveis de corrupção, cujo alcance em termos de prejuízo ao país pode ser em maior ou menor grau, porém, é um ingrediente fortíssimo em nosso “caldo de cultura”.       Exemplos vários não  faltam.   Vão desde “furar” a fila em uma agência bancária ou em um consultório médico, passando por dar um “toco” ao guarda de trânsito, “colar” na prova, copiar e colar trabalhos da internet, até a venda do voto em troca de uma dentadura, um saco de cimento ou um valor em   dinheiro.           Recentemente,   a   prefeita  da  cidade     de   Bezerros,       em Pernambuco, resolveu fazer caridade e “doar” aos moradores da cidade, dinheiro vivo (público).    Afirma o jornalista Valdecarlos Alves que “Desde o ano passado, moradores de Bezerros reservam as quintas-feiras para ir até a casa da prefeita do município, Bete de Dael (PR), a fim de receber uma ‘ajudinha de custo’, que varia de R$ 5 a R$ 15, em troca do número do título de eleitor. A distribuição de dinheiro foi flagrada pela reportagem da Folha de Pernambuco, na manhã de ontem. Após receber denúncia anônima de que a gestora estava realizando a prática, a equipe foi até a rua Sigismundo Gonçalves, em frente à praça dos Tamarindos, para checar a informação que movimentava a casa rosa (de propriedade da prefeita).  No local, populares – que preferiram manter a identidade preservada - relataram que, semanalmente, enfrentam fila em frente à casa de Bete para serem recebidos por ela, que seria pré-candidata à reeleição.”[xx]  
           Repito, mesmo levando-se em consideração todas as condicionantes para que se justifiquem determinadas condutas por parte do povo, tem-se que avaliar mais detidamente essas condutas.     Não é o atual Governo que tem um discurso de que nos últimos anos milhões de pessoas foram alçadas à classe média no Brasil ?    Essa “evolução” econômica não acompanhou outros aspectos da sociedade ?    O que observo são ações que ajudam a compor uma imagem, para mim, de decadência da sociedade brasileira e não de evolução.      A grande quantidade de pessoas, mesmo de escalões mais baixos do serviço público, que participam de todo tipo de fraude; a venda de sentenças por parte de juízes e desembargadores; a utilização dos carros dos diversos órgãos públicos que servem a interesses que vão desde pegar os filhos de servidores/gestores públicos na escola até levar a feira da semana em casa; os interesses conflitantes das classes trabalhadoras, que, fragmentadas em diversas centrais sindicais, lutam entre si muitas vezes por benesses do governo (como a CUT), ou, descendo ainda mais à base trabalhadora, a falta de união e de coesão, como observo em greves da Caixa Econômica Federal, em que muitos trabalhadores deixam de fazer greve não por motivos de convicção, mas por motivos bem particulares como o de demonstrar serviço para a gestão da empresa, enquanto outros colegas estão lutando por melhores condições de trabalho, e onde um presidente de sindicato tentou sozinho reverter o resultado de uma votação de uma assembléia de trabalhadores, demonstram que o interesse privado, em detrimento do público, não se fazem apenas presentes nos altos escalões da sociedade, mas nos extratos inferiores, mesmo que esses segmentos da sociedade tenham acesso a uma melhor formação, em um processo de assimilação de poder pelo (mau) exemplo, em que “pessoas nessa situação [de ascensão social] aceitam numa parte de sua consciência as normas e maneiras da classe superior como compulsórias para si mesmas”[xxi] são alguns exemplos de que as ações e as reações dos indivíduos tem motivações variadas e complexas, mesmo levando-se em consideração os diferentes níveis de influência de cada um (ou de interdependência, segundo Nobert Elias), isso porque a “...definição antiga de res publica – coisa pública – ainda está distante da memória e da prática dos brasileiros. A democracia republicana deve estar atenta a valores como participação popular, atitudes cívicas e interesses públicos.  É preciso ir além do interesse privado.   Buscar algo em comum é um grande passo para alcançar valores republicanos.”[xxii]
            As apropriações do que é “ser popular” variam de acordo com os interesses dos variados atores sociais.    Para grande parte dos atuais políticos que estão no poder, como os do PT e de outros partidos de “esquerda”, o discurso do que é ser popular é, por exemplo, não ser vilipendiado quando se é um “reeducando” da Funase, mesmo que na prática o que ocorra seja a total violação dos direitos humanos; é aprovar cotas para negros mesmo que a maioria dos pobres (pardos, mulatos, morenos, índios e até brancos) fiquem de fora dessas cotas, porque assim mascara-se o real problema que não é se deve haver ou não cotas mais sim o acesso a todos a uma educação de qualidade, da educação infantil até ao ensino superior; é aceitar invasões de prédios públicos, por parte do MST, mas não promover verdadeiramente a reforma agrária; é dar o bolsa-voto, quer dizer, bolsa-família, mas sem cobrar a contrapartida da presença dos filhos do povo nas salas de aula; e é construir uma grande quantidade de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) mesmo que essas UPAs prestem um serviço de péssima qualidade com a falta de remédios, esparadrapo e até médicos.   Essa maneira superficial do que seja a atuação “popular”, sem conseguir penetrar nas estruturas que mantêm as profundas desigualdades no Brasil, é uma de nossas principais características.   Somente a herança escravista  explicaria essa falta de atuação popular ?     Explicaria por exemplo, o fato de pessoas roubarem bebida de um caminhão tombado enquanto o motorista morre no meio das ferragens;  de caminhoneiros explorarem sexualmente meninas pelo interior afora do Brasil; de jovens quebrarem ônibus após um jogo de futebol; de pais torturarem ou matarem seus bebês pelo fato dos mesmos estarem chorando bastante ou de alunos espancarem ou até  balearem  professores ?   Conforme registrou o professor Severino Vicente, “Um professor-estagiário, ainda aluno do curso de História da Universidade Federal de Pernambuco, foi agredido por uma dezena de alunos no interior da escola onde leciona. A ocorrência tem início com o fato de o professor estagiário, – que foi meu aluno e, por diversas vezes foi até à minha sala para discutir como fazer para que os seus alunos gostassem mais de estudar história – está exercendo a atividade para a qual foi contratado pela Secretaria de Educação do município, seja dizer, estava em sala de aula. No corredor, ao lado, vários alunos jogavam futebol e, essa ação de recreio, fora do tempo e do lugar adequado, impedia o bom andamento da atividade docente. O professor dirige-se aos alunos e diz que não está correta a ação deles. A reação foi uma surra que os alunos deram no professor. No dia seguinte, a professora aposentada, atual secretária de educação do município vai à escola ouvir os professores que se sentem temerosos de voltar à sala, pois também podem vir a ser agredidos pelos alunos, uma vez que ficou comprovada a ausência de segurança para o exercício da atividade profissional. Os professores escutam da secretária que não deve haver medidas disciplinares contra os alunos agressores do professor.”[xxiii]  Em um país onde nome de escola muda de acordo com conveniências políticas, não é de se espantar que um professor apanhe em sala de aula, pois o “elemento popular” tem que ser valorizado.  A União dos Estudantes Secundaristas UBES recentemente divulgou uma nota em que manifestou seu  “... repúdio à atitude fascista do governo do Maranhão de mudar o nome do Centro de Ensino Paulo Freire para Centro de Ensino Roseana Sarney Murad. Além de um repugnante culto à personalidade a medida afronta a memória de um dos maiores educadores do Brasil e do mundo, professor Paulo Freire. A UBES faz um veemente desagravo ao educador Paulo Freire e a todos que com ele construíram as bases de uma educação libertadora. A atitude do governo Roseana Sarney Murad agride Paulo Freire e por extensão a todos e todas que compartilham de suas idéias.”[xxiv]   Mitificações à parte, fico a pensar o quanto nossa universidade (e outras também) não estariam distantes do desejo de Paulo Freire (esse sim um exemplo de valorização do elemento popular).  Priorização das áreas consideradas “úteis” dentro da universidade; disputas de poder;  falta de coesão e de capacidade de luta dos docentes; falta de embasamento teórico e falta de comprometimento com o curso e ligações político-maniqueístas com superfragmentados partidos “de esquerda”, por parte dos alunos, cujos objetivos são muitas vezes, só o de rasteiro proselitismo político, formam em minha opinião, um triste quadro atual de nossa UFPE, distante do modelo de educação como práxis proposto por Paulo Freire.    Repito, em minha opinião, vivemos uma decadência total do que sejam valores humanos mais elementares, desenvolvidos principalmente a partir da Revolução Francesa, numa nova configuração política onde a busca pela “...felicidade de todos era o objetivo do governo e de que os direitos do povo deveriam ser não somente accessíveis, mas também operantes.”[xxv]
            Em meio a repressão seletiva republicana, José Murilo de Carvalho registra que a Monarquia tinha grande popularidade principalmente entre as camadas mais populares,   pois  associava a figura do  imperador  à  Abolição ocorrida  há  apenas  um ano e meio antes da proclamação da República.    Não se via um novo pacto de poder, necessário para o estabelecimento do novo regime, pois inúmeros problemas como agitações diversas, guerra civil nos Estados do Sul, crise na economia cafeeira e na administração da dívida externa, agravaram a instabilidade política do país durante quase dez anos de República.   Na verdade havia pactos setoriais e temporários dependendo dos interesses da ocasião.    Agitações militares e populares muitas vezes tinham interesses comuns, interesses que, segundo o autor, eram incompatíveis com os do grande comércio e da grande indústria.   O governo, buscando enfraquecer tais agitações procurou enfraquecer a capital fortalecendo os Estados, pacificando e cooptando suas oligarquias, como bem demonstrou o governo Campos Sales.     A gradativa sobreposição dos poderes da União sobre os da cidade do Rio de Janeiro, como nos casos da criação de um Conselho de Intendência no lugar da Câmara de Vereadores, a nomeação do prefeito pelo  Presidente da República, e o processo eleitoral “...totalmente falseado pela intimidação, pela violência, e pela fraude,”[xxvi], teve como consequência uma postura ditatorial positivista baseada na escolha de  pessoas, que apesar de terem perfis mais técnicos, como os prefeitos nomeados, estavam dissociados da representatividade dos cidadãos locais, até por serem de outras partes do país, alheios à vida da cidade.   O Código de Posturas Municipais, de 1890, com suas detalhadas medidas de higiene e outros controles, a repressão florianista, as dificuldades dos operários em se organizarem em partidos e participarem do processo eleitoral, o afastamento dos intelectuais da política, a supressão dos jacobinos, a corrupção da política municipal, desembocou em um processo onde “O marginal virava cidadão e o cidadão era marginalizado.”[xxvii]    A participação popular passava ao largo das decisões políticas.    As “pequenas repúblicas” existentes na cidade, como os cortiços, eram destruídos sem que os seus habitantes fossem integrados à República maior.          A influência francesa (belle époque) se fez representar através das medidas de higiene pública e das grandes reformas urbanísticas.   Por outro lado, novas formas de movimentação popular, conforme registra o autor, foram absorvendo antigas representações.  Foi o caso, por exemplo, das festas portuguesas da Penha, do futebol, da criação do samba, que seriam os elementos constitutivos de uma primeira identidade coletiva da cidade.   
          Eu tenho certa dificuldade em assimilar cultura popular como formadora de uma identidade que não ajude o povo a refletir sobre sua realidade.    Citarei alguns exemplos.   Festas católicas são amplamente difundidas em nosso país, inclusive com ampla cobertura pela mídia.   No entanto, não se vê nessas festas, um caráter reflexivo sobre o significado da própria festa e nem sobre o que ela pode representar em termos de conscientização.      É uma Missa do Vaqueiro que não questiona a continuidade dos assassinatos no campo; é uma Festa do Morro da Conceição onde políticos aproveitam para pedir voto; uma Festa da Pitomba onde as  principais atrações são as “profanas” em que grupos de música “brega” fazem apologia a pedofilia e a vulgarização da mulher e do homem; ou uma Festa das Lavadeiras, que conta com o apoio da Prefeitura do Recife, para fazer o seu marketing político.   Não que não existiram e nem existam padres ou líderes preocupados com um trabalho de maior robustez social, e que as festas populares não tenham sua importância na formação psicológica das pessoas, mas infelizmente, o que observo, são manifestações desprovidas de maior senso crítico.     Da mesma forma o carnaval, que atualmente converteu-se em um negócio onde os administradores públicos aproveitam para oferecer ao povo um circo romano adaptado ao gosto brasileiro, e os lucros multiplicam-se para emissoras de televisão e seus ricos anunciantes.        No Rio de Janeiro e em São Paulo, as prefeituras e seus respectivos governos estaduais são co-patrocinadores,  junto com o crime organizado, do carnaval das escolas de samba, e onde o “elemento popular” muitas vezes passa ao largo da festa, ficando excluído por falta de condições financeiras em participar da mesma.   É isso e não adianta falar de raízes. Uma fantasia de uma ala não sai por menos de dois salários mínimos. Fora a bateria, as baianas e uma ou outra “ala da comunidade” a escola de samba cobra para que você tenha o seu minuto de avenida. Os chefes de alas já estão profissionalizados. Recebem os desenhos dos figurinos e fazem a arrecadação, que não aparece na contabilidade da ‘firma’.” [xxviii]   Em Salvador, o carnaval dos trios elétricos tornou-se um negócio onde ser popular é ficar de fora desse carnaval, por não se poder pagar para participar dessa “festa popular”, e estar sujeito às mais absurdas agressões no espaço conhecido como “pipoca”.   Em Recife, o carnaval “multicultural” serve como propaganda da prefeitura, que em seus exuberantes pólos descentralizados de carnaval, tem a dupla função de, principalmente em ano eleitoral, fazer a propaganda do partido que está no poder e, através da cooptação de artistas e líderes comunitários locais, disseminar essa propaganda após o período de Momo. “O que me tocou, em especial, foi a participação maciça dos pernambucanos no Galo da Madrugada, um bloco sem cordões, registrado no Guiness como o maior do mundo, ao qual se juntaram dois milhões de foliões.   Isso significa bem mais do que toda a população de Recife, que é de 1 milhão 450 mil habitantes (43% dos moradores da Região Metropolitana). Pelas imagens que vi, em alguns pontos, as pessoas simplesmente caminhavam. Mas estavam ali, naquele tumulto, com a mesma disposição dos muçulmanos que vão à Meca nos dias sagrados do Ramadã.  Ao contemplar aquela massa apinhada no centro de Recife, fiz-me uma pergunta despropositada: quantos desses estão desempregados ou ganhando míseros salários? Quantos brigariam por uma escola pública de qualidade ou um sistema de saúde decente? Quantos sairiam de casa para um outro tipo de manifestação, uma passeata de protesto ou simplesmente reivindicativa?”[xxix]
           Com relação ao futebol, o mesmo é esporte “de massa” no sentido de que o gosto da ampla maioria da população pelo esporte tirou o sentido elitista do  mesmo.   Porém, o futebol, assim como o carnaval, foi realmente apropriado, não pelo povo, mais por uma emissora de televisão que comprou, a “preço de banana”, os direitos de transmissão dos jogos e promove uma elitização de apenas doze clubes no país, que detém a imensa maioria dos recursos do futebol, em detrimento de centenas de outros clubes Brasil afora, onde muitos já fecharam as suas portas para o povo, amante desse esporte “de massa”, e onde também a transmissão sistemática dos jogos, associada a violência das torcidas, contribui para o afastamento do povo dos      estádios.     E estádio vazio pode significar tudo, menos que represente o   “elemento popular”.      
          Se todas essas manifestações “populares”, principalmente aliadas ao péssimo acesso à educação  de qualidade, ao desemprego e à miséria contribuírem para o aprofundamento da alienação, para o aumento dos índices de criminalidade e consumo de drogas lícitas ou ilícitas, serão considerados meros e descartáveis detalhes para quem se apropriou do que seja “popular” no Brasil e se mantêm no poder também por causa disso.
        
          No segundo capítulo (República e Cidadanias), o autor procura mostrar que o porre ideológico, descrito no primeiro capítulo, na verdade, não era tão desorientado  assim.    Tinha seus objetivos claros.  A ideologia, dera lugar a um novo espírito onde o que havia agora era “...pão, pão, queijo, queijo.  Dinheiro é dinheiro.”[xxx]   Um  liberalismo que preservou a concentração de poder nas mãos das classes dominantes, presente na Lei de Terras de 1850; na Lei de Sociedades Anônimas de 1881; na criação, utilizando palavras de Karl Marx, de um excedente de mão-de-obra, após a abolição da escravidão; a baixíssima representatividade democrática, limitada a participação eleitoral de um por cento da população alfabetizada, com a exclusão, da sociedade política, dos pobres, dos analfabetos, dos marginalizados, dos desempregados e de todos aqueles que não se encaixavam no esquema de preservação do status quo vigente; a lentidão nos avanços dos direitos civis; o descompasso entre a introdução do federalismo, visando a desconcentração do exercício do poder, e a falta de expansão da cidadania política, são reflexos de mudanças mas também de permanências de mentalidades vindas desde o segundo reinado.      As permanências desiludiram, por exemplo, ideólogos radicais, como Silva Jardim, que logo cedo percebeu que o novo regime não seria o de seu rousseaunianismo, em que ingenuamente seria posta em prática “a visão do povo como entidade abstrata e homogênea,  falando  com  uma  só voz, defendendo os mesmos interesses comuns.”[xxxi]       Além disso, a participação revolucionária popular não apresentava concretamente as idéias e os projetos que seriam objetivamente postos em prática na construção de uma nova República.    Não se tinha a idéia de “...como seria a participação popular no novo regime.  Falava apenas na necessidade inicial de uma ditadura republicana, que lhe poderia ter sido inspirada tanto por Robespierre quanto pelo positivismo, a ser depois legitimada por sufrágio universal.”[xxxii]  Verificamos essa falta de projeto político mais consistente, por parte dos chamados patriotas também na formação dos países sul-americanos no contexto pós-guerras pela independência no início do século XIX.     Simon Bolívar, por exemplo, “Ao presenciar o surgimento e o aprofundamento de um quadro de clientelismos foi obrigado a reconhecer o colapso do seu projeto, afinal, um projeto utópico.  Já à beira da morte e desiludido, escreveu ao General Flores: ‘Aquele que consagra os seus serviços a uma revolução, lavra no mar.’[xxxiii]
           A luta pela integração dos militares a um tipo de cidadania vinculada ao Estado (estadania), e não a uma cidadania ligada a outros setores populares, sendo minoritário o número de militares que propunham a aliança entre o soldado e o povo, e o acesso a cidadania a um tipo de trabalhador que servia ao Estado (operários do Estado), são dois exemplos em que segmentos populares buscam seus interesses bem particulares em detrimento dos interesses dos trabalhadores em geral.     O autor, citando diversas tentativas de organização de trabalhadores, de cunho basicamente socialista, afirma que “Nenhuma delas teve longa vida, muitas não chegaram a  completar um ano.”[xxxiv]   
          Outro grupo,  citado pelo autor, como distinto de outros grupos populares, são os anarquistas.     Registra as diversas publicações anarquistas que surgem ainda no início da República; aponta as diferenças entre anarquistas comunistas e individualistas e mostra o enfrentamento entre anarquistas  e   socialistas, e os seus diversos entendimentos sobre os conceitos de cidadania e pátria.    Havia os que não aceitavam o conceito de pátria associado a um país, como a Federação Operária de São Paulo ou a Federação Operária do Rio de Janeiro.     Discordo, embora eu não seja anarquista, da denominação que o autor dá ao movimento anarquista como sendo alienado[xxxv], pois embora suas posições sejam muito radicais, suas reflexões sobre a sociedade ajudam a questionar os modelos políticos dessa mesma sociedade.  Quando determinado grupo anarquista registra que “A pátria é de quem rouba e explora, a pátria é o privilégio e o monopólio, a guerra é uma monstruosidade filha do interesse e da rapina.”[xxxvi] está, embora reforçando sua idéia do conceito de antipátria, também questionando ações dos exploradores dessa pátria, como tantos outros grupos o fizeram.
           Em suma, as várias concepções de cidadania, expostas no capítulo dois, mostram a complexidade de interesses dos mais variados grupos, com a ascensão de uns e a frustração de outros, no início da República brasileira.

            No terceiro capítulo (Cidadãos Inativos: A Abstenção Eleitoral), o autor, busca a análise dos candidatos a cidadãos, surgidos em meio a confusão ideológica vivida pela República, e de suas práticas concretas de participação política.   Carvalho,  traz à tona fontes contemporâneas ao período, para tentar interpretar a atuação dos diversos atores políticos.     As afirmações do tipo “o Brasil não tem povo”[xxxvii] (Couty), passando por Blondel (“antes surpreso que entusiasmado, não pode compreender o que se passa.”)[xxxviii], Amelot (“No Rio não há nem povo, nem operários, nem artífices, [apenas] alguns grupos de pessoas de cor, fáceis pretorianos cujas aclamações se compram a baixo preço.”)[xxxix] e Adam (“o grosso da população não se interessa por política.”)[xl] são registradas pelo autor como produto do preconceito   europeu       com           relação        ao            Brasil.        Afirmações semelhantes também foram registradas por brasileiros como Aristides Lobo, com a já citada afirmação sobre os “bestializados”, e Raul Pompéia (“o espírito público do Rio de Janeiro é um ausente.”)[xli].     O autor afirma que tanto o movimento abolicionista quanto o republicano foram resultado da articulação e da luta de poucos homens apoiados apenas pela curiosidade de muitos, nada mais que          isso.  Porém, o autor questiona se essas visões apresentadas não estariam impregnadas não só de preconceito, mas de uma idealização do tipo de cidadão que se buscava, militante, politizado, bem articulado, jacobino.     Nesse caso, o simples fato do povo não se enquadrar nesses “padrões” idealizados, por si só bastariam para que outras manifestações não fossem consideradas como lutas populares.      O autor, afirmando serem exageradas as concepções que se tinham sobre o povo, mostra que, durante os dois reinados e no período regencial, houve momentos de agitação e manifestação popular, como, por exemplo, a Revolta do Vintém; mostra que as agitações se tornaram cada vez mais freqüentes após a proclamação da República, com o jacobinismo florianista e seus embates com republicanos conservadores e liberais;  os batalhões e clubes patrióticos; a tentativa de golpe, em 1892, ao governo Floriano Peixoto;  a tentativa de golpe, em 1900, ao governo Campos Sales; e a culminância da expressão popular, no registro do autor, que foi a Revolta da Vacina.    O povo, não mais tido como apático, agora era visto como a escória jacobina que a nada respeitava, visto que sua origem e suas atitudes representavam bem o que eles seriam: a "canalha".      O ódio aos estrangeiros seria um “nativismo exacerbado” e não fruto de relações sociais conflitantes há tempos;  o Rio de Janeiro seria a “antinação” onde não mais comportaria um povo que não era  povo.  
            Carvalho, tentando descobrir onde estava o povo, mostra um considerável número de dados censitários.     A diversificação de categorias profissionais; a exclusão da maior parte dos recenseados, da formalização do trabalho, a participação estrangeira na vida da cidade, principalmente portuguesa com relação ao controle da riqueza, são alguns elementos desenvolvidos pelo autor para tentar entender a distribuição quantitativa e qualitativa desse povo.   Analisa também, através dos dados censitários,  a participação política popular através do viés eleitoral que se apresentava.      A exclusão legal de mulheres, analfabetos, menores de vinte e um anos, praças de pré e frades resultava em um eleitorado de apenas 20% do total da população.     Em 1910 apenas 0,5% da população total teve validado seus votos.    Uma das explicações para essa apatia popular, além da anulação arbitrária de muitos votos e da fraude eleitoral, onde, nas palavras de Lima Barreto, o “...excesso de voto é forgicado a bico de pena.”[xlii], era  o  perigoso  exercício  do  ato de votar.     Capangas, assassinos e bandos armados ofereciam seus “préstimos” aos mais variados políticos durante o processo eleitoral e no dia da eleição.    Agenciamento de manifestações políticas, organização de vaias nas galerias da Câmara, fabricação de vitórias eleitorais redundavam em um processo onde em uma “...população de um milhão, deputados se elegiam com um ou dois mil votos.   Destes pouquíssimos votos, a maioria era falsa.    Votavam defuntos e ausentes e as atas eram forjadas.    Ninguém mais se escandalizava, pois todos sabiam que ‘o exercício da soberania popular é uma fantasia, e ninguém a toma a sério’.    O Congresso assim formado ‘não merece a confiança do povo que por isso se interessa da sua escolha e composição.’”[xliii]       Acredito que a questão do voto deva ser aprofundada.    Da mesma forma que ficou demonstrada, por Carvalho, que a participação popular  irrisória, no processo eleitoral, significou que a população ficou alijada das decisões da escolha dos seus governantes, em minha opinião, o simples aumento dessa participação não significou que as decisões tomadas por esses líderes eleitos por uma camada maior da população,  tivessem melhorado qualitativamente por causa disso.      Um maior número de votos em termos quantitativos pode até significar uma piora qualitativa desses mesmos votos.      De uns dias para cá, o governo federal vem bombardeando os lares do país com uma propaganda que evoca um enganoso heroísmo de pessoas que não tem a obrigação de votar, mas que tem a opção de fazê-lo, como  os  menores  de  dezesseis e dezessete anos, os portadores da síndrome de Down e os idosos.     Enganoso porque aos menores de idade não são dadas oportunidades de acesso a educação de qualidade, em que poderiam ter melhores condições de refletir sobre a escolha de seus governantes; aos portadores da síndrome de Down porque não existe acesso, no setor público, a tratamentos adequados ao desenvolvimento dos mesmos; e aos idosos porque, mesmo tendo sido enganados a vida inteira, contribuindo para um sistema previdenciário público que, ao longo do tempo lançou mão desses recursos para diversos fins, inclusive fins corruptos, não tiveram a consciência em votar em governantes voltados para a correta administração da res publica.      Mais enganoso ainda é o voto do analfabeto, por motivos desnecessários de registro.       Em minha opinião, acabar com o direito a voto do menor de idade, do portador da Síndrome de Down, do idoso e do analfabeto não resolve o problema.   A questão central, repito tantas vezes quanto forem necessárias, passa por profundas transformações no processo educacional, desde a base até a formação superior para que a massa de votos melhore qualitativamente.  Por enquanto, o que se tem é um povo que troca o seu voto por uma “sopa de lentilhas”, assim como Esaú trocou sua primogenitura na história bíblica.    
            Em meio ao quadro caótico em que estava o povo, na primeira República, em alguns momentos esporádicos, em minha opinião, o povo viria a lutar pelo que acreditava ser o melhor para si, como no caso da Revolta da Vacina.

            No quarto capítulo (Cidadãos Ativos: a Revolta da Vacina), o autor reforça a idéia do capítulo anterior em que, a não participação eleitoral não significava necessariamente a não participação política.    A Revolta da Vacina representou, segundo o autor, a mais espetacular ação popular da época.     O contexto econômico no qual se deu a revolta apresentava o novo presidente, que havia assumido em 1902, Rodrigues Alves, apesar de “herdeiro” de uma recessão econômica, através do financiamento externo, como empreendedor de um programa intensivo e ambicioso de obras públicas.  Essas obras, operacionalizadas pelo prefeito Pereira Passos, visavam a construção de novas ruas, avenidas, edifícios, canais.  Entendo que o autor, de maneira errônea, tenta “naturalizar” as ações de Pereira Passos na medida em que afirma que as reformas serviram para reduzir a promiscuidade social em que vivia a população do centro da cidade.    Não questiona o autor, o contexto dessa promiscuidade e nem se as novas condições a que foram submetidas a população, desapropriada de suas casas, eram piores que as anteriores.  Junto com essas obras, medidas de saúde pública, a cargo de Oswaldo Cruz, também foram implementadas.   Medidas que representavam o combate à febre amarela, à peste bubônica, além das rigorosas ações de higienização onde “Brigadas sanitárias, compostas de um chefe, cinco guardas-mosquitos e operários da limpeza pública, percorriam ruas e visitavam casas, desinfetando, limpando, exigindo reformas, interditando prédios, removendo doentes.”[xliv]
            A implantação da vacina obrigatória contra a varíola foi o estopim da   revolta.    Entre 1889 e 1903, uma série de leis foram criadas pelo novo regime para o reforço da obrigatoriedade da vacinação para alguns grupos de pessoas.     Adversários do governo no Congresso, alegando ser inconstitucional a obrigatoriedade da vacinação, e aproveitando as tensões que estavam sendo gestadas nesse processo, constituíram uma frente de luta contra “...o governo do ex-monarquista e conselheiro Rodrigues Alves e contra as oligarquias estaduais que dizia serem o sustentáculo da República prostituída”[xlv].      A imprensa, através dos jornais Correio da Manhã e Commercio do Brazil também faziam campanha contra a vacinação.    Segundo Carvalho, os positivistas ortodoxos constituíam o grupo que fazia a maior oposição à vacinação.  Segundo concepções positivistas, Comte não teria aceitado a teoria microbiana das doenças.     Para esses positivistas ortodoxos, o governo não deveria se intrometer no domínio da saúde pública, que era reservado ao “poder espiritual”.     Em 1904, na iminência da passagem de uma nova lei, que ampliaria a obrigatoriedade da vacinação, os positivistas “recorreram a verdadeiro terrorismo ideológico, apontando na vacina inúmeros perigos para a saúde, tais como convulsões, diarréias, gangrenas, otites, difteria, sífilis, epilepsia, meningite, tuberculose.”[xlvi]      Outra resistência era de ordem moral.    Apelava-se para a mentalidade masculina que não admitiria que qualquer outro homem tocasse nas mulheres de sua casa.    A “...violação do lar e da brutalização aos corpos de suas filhas e de sua esposa [onde] a virgem, a esposa e a filha terão que desnudar braços e colos para os agentes da vacina.”[xlvii]  tocaria fundo nessas sensibilidades e seria, na opinião de Carvalho, a maior causa da Revolta da Vacina.  A partir do dia 10 de Novembro de 1904, estudantes, segundo o dúbio jornal O Paiz, entraram em confronto com a polícia.  “Morra a Polícia! Abaixo a vacina!” são as palavras de ordem.     Nos dias que se seguiram, os confrontos se repetiram.   
           A Revolta da Vacina ensejou os conflitos das mais diversas ordens.    Conforme já registrado, opositores do Governo, aproveitando as tensões do momento, criaram todo um fato político para por a culpa no Governo pela “violação” do lar sagrado dos cariocas.      Os jornais, em uma época em que não  havia  rádio,  televisão  e internet, reinavam absolutos como importantes formadores de opinião.   Notícias davam conta do “sucesso” ou do “fracasso” da revolta, de acordo com seus interesses.   Enquanto que para o Correio da Manhã, a manifestação em frente a sua sede reuniu  “...umas quatro mil pessoas, ‘de todas as classes sociais’, comerciantes, operários, moços militares e estudantes.”[xlviii], para O Paiz, essa manifestação não passou de um encontro de “desocupados e mazorqueiros”[xlix] .     Reivindicações populares eram vistas, por esse jornal, como um “...sinal de perigo de surgir no Rio uma pequena comuna, uma convenção municipal, despótica e tirânica como a convenção francesa.”[l]  Ataques a bondes, tiroteios, depredações, barricadas, destruição de parte da iluminação pública, e utilização de tudo o que pudesse ser utilizado como arma como garrafas, latas, pedras, paralelepípedos, projéteis vindos das casas, onde “o povo repelia a tiros de revólver, golpes de ferro e cacete.” [li], foram colocados, por parte do Correio da Manhã, na cota de responsabilidade do ministro da Justiça e do presidente da República.   As barricadas eram uma espécie de símbolo da resistência popular.    Para o Jornal do Commercio porém, as pessoas que compunham essas barricadas formavam uma “...multidão sinistra, de homens descalços, em mangas de camisa, de armas ao ombro uns, de garruchas e navalha à mostra outros.”[lii]  
           Paralelo a revolta popular, ao aproveitamento político da revolta e às diversas coberturas jornalísticas, militares também se rebelaram em prol de seus interesses específicos.      Cerca de 300 cadetes da Escola Militar da Praia Vermelha, entraram em conflito com tropas do Exército, Marinha, Brigadas e Bombeiros, porém logo se renderam.     A revolta civil, mais resistente que a militar, continuou.  Operários também atacavam a polícia, aproveitando a revolta para lutar por suas   reivindicações.   Batalhões de Minas Gerais e de São Paulo vieram em auxílio ao Rio de Janeiro.    No dia 18 de Novembro, após pesado assalto das forças armadas, a revolta foi contida. 
           José Murilo de Carvalho detalha a grande variação da participação popular na Revolta da Vacina.   Para o autor, integrantes do Centro das Classes Operárias, e outras categorias profissionais como   estucadores, pintores, chapeleiros, pedreiros, grupos de marinheiros e remadores, trabalhadores da indústria do fumo, carpinteiros e foguistas, dentre outros,  participaram ativamente da revolta.  Por outro lado, a Sociedade União Operária dos Estivadores, procurou O Paiz e “...disse que a associação nada tinha a ver com as desordens”[liii].      Divergências entre o Centro das Classes Operárias e a Federação das Associações de Classe, com a primeira recorrendo à mediação política em auxílio aos seus conflitos, e a segunda, de postura mais radical, discordando dessa posição, é mais um exemplo das diversas fragmentações existentes entre os trabalhadores.   
          O autor também analisa os possíveis motivos da revolta.     A crise econômica “herdada” do governo Campos Sales, a ampla reforma urbana que atingiu de maneira diferente setores populares e econômicos teriam contribuído para a revolta.     Porém apesar das grandes desapropriações promovidas pelas reformas urbanísticas, o autor não registra revoltas populares por causa dessas reformas.     Por outro lado, registra a ação de alguns comerciantes que distribuíram querosene para queimadores de bondes, pois as desapropriações e o aumento de impostos e taxas iam de encontro aos seus      interesses.      Fica para o autor, porém, o registro da motivação maior da revolta a vacinação em si.     Para o povo, “os valores ameaçados pela interferência do Estado eram o respeito pela virtude da mulher e da esposa, a honra do chefe de família, a inviolabilidade do lar”[liv].    Para a elite, “os valores eram os princípios liberais da liberdade individual e de um governo não-intervencionista”[lv].    Uma das principais conseqüências da revolta é a decepção em um regime republicano que não respeitava os princípios mais elementares de opinião pública, em consonância com as tradições mais autoritárias, conforme analisou e até concordou Oliveira Vianna em suas  obras.      Apesar de todo o ocorrido, e do resultado final mais palpável ter sido apenas a interrupção da vacinação, segundo o autor ficou um sentimento de “...orgulho e auto-estima, passo importante na formação da cidadania”[lvi].
           A afirmação acima, em minha opinião, é exagerada.  Por mais importante que tenha sido a Revolta da Vacina, ou outros movimentos populares ao longo da História do Brasil, infelizmente não observo movimentos nacionais, como por exemplo, no  México (1910).    É claro que são muito importantes as “pequenas” lutas populares para a construção da  cidadania.     As greves dos “Ferroviários, marítimos, estivadores, cocheiros e condutores de bondes [que] fizeram sua entrada no cenário político, promovendo as primeiras paralisações da capital,”[lvii], os movimentos dos  “...intelectuais de classe média e artesãos qualificados, como os gráficos, [que] viram sua possibilidade de intervir na política através de propostas de natureza socialista.”[lviii] e a “...ameaça de greve por parte de alguns setores do operariado do Rio que forçou o governo a reformar logo os artigos [do Código Criminal de 1890] que continham a disposição antioperária (205 e 206)” [lix], embora importantes, não tiveram o caráter nacional observado.
            No México, a concentração de terras,  onde cerca de 3% da população, conhecidos como guachupines, detinham a maior parte das terras (haciendas) e onde cerca de 95% dos camponeses não eram proprietários, aliada à modernização agrícola provocaram a destruição da economia camponesa e dos direitos das comunidades  rurais.   O México estava inserido em um contexto onde “...a base da oligarquia latino-americana ergueu seu predomínio tomando por base a monopolização da (e o acesso à) posse da terra.  A ampliação até os limites máximos dessas propriedades fundiárias, quando não o controle sobre terras cultiváveis ou de escassa oferta de água, e o controle sobre a reduzida força de trabalho têm constituído o aspecto mais significativo da história da propriedade da terra até umas poucas décadas”[lx].    A consequência foi a composição de um quadro que ajudou a derrubar o Governo Porfírio Diaz e levou a uma “...sangrenta guerra civil que acabou, pela revolução social que se seguiu, destruindo a herança colonial da fazenda.  Por muitos anos, em pleno século XX, o México seria o único país latino-americano a ter destruído os símbolos e a realidade desse antigo patrimônio sócio-econômico.”[lxi]   Uma das principais diferenças, senão a principal, entre a situação brasileira e a mexicana, em termos da impossibilidade dos primeiros em se articularem nacionalmente em oposição a possibilidade dos segundos, é que, diferente dos brasileiros, entre os camponeses mexicanos existia toda uma memória histórica que havia sido construída antes do Porfiriato e que serviu de base para a reação ao mesmo pois “Muitos movimentos revolucionários tiveram como palavra de ordem e objetivo o regresso ao passado; por exemplo, a tentativa de Zapata de restaurar, no México, a sociedade camponesa de Morelos, no estado em que se encontrava quarenta anos antes, riscando a época de Porfírio Diaz e regressando ao status quo anterior.”[lxii] é que revelam, para mim, que a pesadíssima herança escravista no Brasil foi e é um elemento decisivo para a falta de coesão do elemento popular, embora isso não signifique, em minha opinião,  a impossibilidade permanente dessa coesão.
           
            No último capítulo do livro (Bestializados ou Bilontras ?), o autor, buscando fazer uma síntese dos quatro primeiros capítulos, questiona se a as afirmações de que o povo assistia bestializado os acontecimentos da mudança do regime monárquico para o republicano; se era apático; se não era apático mas não era povo; se as representações culturais como o carnaval significavam manifestações alienantes; se era composto de cidadãos ativos ou não.     Posiciona-se afirmando que “...este cidadão de fato não existia no Rio de Janeiro”[lxiii]     É claro que, devemos levar em consideração todo um contexto da época e de mentalidades sobre qual deveria ser o conceito de cidadania para a elite local e estrangeira, porém, mesmo procurando abstrair essa importante variável, e levando-se em consideração as diversas fontes apresentadas pelo autor, também levando-se em consideração que os documentos não falam por si só e dependem das escolhas e interpretações do historiador, considero a existência de diversas permanências no modo de ser de nossa sociedade e não entendo como preconceituosa a interpretação do autor com relação ao povo, pelo menos não em todos os trechos que  foram entendidos como sendo preconceituosoas, nos debates em sala de aula.      Acredito que as possíveis “causas” que tornaram possíveis a confecção do tecido social brasileiro são complexas, difíceis de serem analisadas e estão em permanente estado de descoberta, mas, repito, a escassez de fontes ditas “populares” talvez não seja suficiente para classificar o autor como preconceituoso e parcial.   Por outro lado, considero preconceituosa, por exemplo, a afirmação de Rui Barbosa, quando da participação popular durante a Revolta da Vacina quando para ele, o “verdadeiro povo” não participaria de “arruaças”, pois quando não é “resignado, submisso e fatalista”, é “irresponsável e   analfabeto.”     Também considero outra afirmação eivada de preconceito a do chefe de polícia, para quem os revoltosos seriam “fezes sociais”.      Aprofundando um pouco essa última afirmação vemos que o que acontece é o espírito de vingança presente em confrontos armados entre as forças do governo e o povo.   No entanto, o que se observa nas revoltas ocorridas ao longo da História do Brasil é a total desproporção entre as partes em conflito.    Revolta da Vacina, “Guerra” de Canudos, repressão aos “subversivos” do período pós-1964 são alguns exemplos em que as forças do governo foram muito superiores as dos adversários, tudo devidamente articulado com maciça propaganda anti-mobilização popular, como no contexto anterior ao golpe de 1964 em que “O jornalista Tad Szulc tinha usado a primeira página do The New York Times para dar o sinal de alarme quanto ao surgimento do ‘castrismo’ no Nordeste brasileiro, e a administração      Kennedy     estava     se  tornando  apreensiva   como         o              desassossego na região”[lxiv].   Observamos hoje, nas notícias que nos chegam dessa nova Comissão da Verdade, que por sinal de maneira absurda não possui um historiador sequer,  são de que as pressões para se investigar as ações dos “dois lados”, como se tivesse havido dois lados em um confronto equilibrado, já se apresentam por parte dos círculos   militares.    Se houvesse pressão social para que além da “memória” resgatada, a efetiva punição fosse aplicada a quem efetivamente cometeu barbaridades durante a ditadura civil-militar, os dois lados se tornariam apenas um: o dos criminosos do período.
           Quando o autor, por exemplo, citando o embaixador inglês, questiona, surpreso que “até quando podemos esperar que o povo brasileiro aceite carregar tal   peso ?”[lxv], corrobora com os acontecimentos registrados durante a Revolta da Vacina, no sentido de que, o povo brasileiro age (quando age) circunstancialmente e agüenta até os últimos instantes as arbitrariedades das elites e do Estado.    A motivação nunca é preventiva, nunca parte de uma análise das condições estruturais que irão desembocar na conjuntura.  Obviamente, essa capacidade de análise requer uma formação, que foi negada de maneira total pelas elites, porém, como diria o professor Marcus Carvalho, “as coisas não são tão simples”, e muitos outros fatores contribuíram e contribuem para a nossa deficiente formação, porém mesmo com os avanços observados na sociedade brasileira, ainda estamos há anos-luz para que possamos agir com o mínimo de coesão social.      Os poucos exemplos de ação afirmativa popular após o início do período republicano, são escassos  pois o grosso da população está mergulhado “...no fundo das mais fundas das alienações.”[lxvi]      
           Fracassos na ação política nos âmbitos eleitoral, de organização partidária e não-partidária, na visão do autor, revelavam essa ausência de cidadania.       Por outro lado, festas populares profano-religiosas, onde “Não raro, capoeiras navalhavam    romeiros.”[lxvii],  e onde o encontro de governantes com o povo dava-se fora dos domínios da política; o carnaval, que, segundo o autor, deixou perplexo o inglês Charles Dent ao afirmar que “todo mundo perecia ter perdido a cabeça”[lxviii]; o espírito associativo, que era mais religioso e menos político;  a ação política popular, que se dava no máximo em protesto contra a falta ou a precarização de serviços públicos e não através da atuação nas instituições políticas, eram, na visão do autor, o máximo que se poderia observar em termos de atuação popular.   Para Carvalho, mesmo uma revolta como a da Vacina, classificada pelo autor como “espetacular”, “...mostrou claramente o aspecto defensivo, desorganizado, fragmentado, da ação popular.   Revelou antes convicções sobre o que o Estado não podia fazer do que sobre suas obrigações.”[lxix]  Carvalho afirma ainda que a posição popular, mesmo dos que tentavam ações afirmativas, era a de súdito e não a de cidadão.    Argumenta o autor que, a constituição da cidade moderna, diferentemente da cidade antiga, era fruto de negociações políticas   levando-se em consideração cada vez mais os interesses burgueses, segundo Max Weber.     Essa constituição, prossegue Carvalho, teria tido sua culminância no norte da Europa, onde  se desenvolveu primeiro o “...capitalismo moderno de empresa e de trabalho livre, da sociedade liberal, do racionalismo formal, do individualismo.”[lxx], diferentemente da Península Ibérica onde “o liberalismo tenderia a fortalecer o lado maquiavélico, e a democracia a adquirir formas rousseaunianas, populistas, messiânicas.”[lxxi]     Os resultados dessa configuração seriam, no caso do Brasil, a predominância das relações de família ou do grupo de trabalho, em detrimento da falta de organização coletiva mais abrangente, da falta do interesse público e de consciência coletiva.    O autor coloca que a trapaça, a desobediência às leis, o a esperteza, a gozação, um positivismo bem peculiar composto de um pragmatismo utilizado em benefício próprio, vão além das características ibéricas presentes na cidade do Rio de Janeiro.  Peculiaridades na formação da cidade, como as dificuldades geográficas para uma efetiva urbanização, a herança escravista, a co-existência  desordenada dos morros com as regiões à beira-mar e a falta de um efetivo ordenamento legal da convivência entre os diversos setores sociais, contribuíram, segundo o autor, para a desmoralização e do não cumprimento às leis, o que resultou nessa personalidade coletiva “de tribofe”.    O saldo final, apresentado por Carvalho, é que o Rio de Janeiro, “livre da tarefa de representar o país...”[lxxii] ainda precisa encontrar sua identidade como cidade.     Uma identidade cultural que ajude a formar uma consciência de pertencimento efetivo a uma cidade que, junto com outras cidades,  poderá dar sua contribuição na descoberta da identidade nacional, tão distante ainda, em minha opinião, em nossos dias.
        
O livro de José Murilo de Carvalho apresenta-se, em minha opinião, como uma importante contribuição à construção do conhecimento histórico.   Citando Walter Benjamin, segundo a filósofa Márcia Tiburi, o valor de um livro é infinitamente superior ao seu valor monetário pois o conhecimento proporcionado pelo mesmo não tem como ser mensurado.   Como as verdades históricas estão sempre por serem descobertas, e considerando a minha grande necessidade de aprofundamento sobre o conhecimento da participação popular em todos os aspectos da vida nacional, espero que o presente e o futuro me reservem surpresas bastante agradáveis com relação a esse tema tão rico.

* Graduando em História pela Universidade Federal de Pernambuco.


[i]  CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não   foi, p. 9
[ii]  Idem, p. 10
[iii]  Ibidem, p. 18
[iv]  Ibidem, p. 10
[v]  Ibidem, p. 10
[vi]  Ibidem, p. 11
[vii]  Ibidem, p. 21
[viii]  Ibidem, p. 23
[ix]  Ibidem, p. 27
[x] Ibidem, p. 28
[xi]  ROUSSEAU, Jean-Jacques.  Discurso Sobre a Origem e a Desigualdade Entre os Homens, p. 43
[xii]  DA MATTA, Roberto.   O Que Faz o brasil, Brasil ?, p. 69
[xiii]  Idem, p. 69
[xiv]  CARVALHO, José Murilo de.    D. Pedro II e os Valores in Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 5 – nº 50, p. 24
[xvi]  CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi, p. 113
[xvii]  ANDRADE, Manuel Correia de.  A Guerra dos Cabanos, p. 215
[xviii]  Idem, p. 210
[xix]  DA MATTA, Roberto.   O Que Faz o brasil, Brasil ?, p. 65
[xxi]  ELIAS, Norbert.    O Processo Civilizador Volume 2 – Formação do Estado e Civilização, p. 258
[xxii] LIMA, Vivi Fernandes de.   ...E Depois.  Presentes nos Discursos Oficiais, os Valores Republicanos Ainda     Engatinham na Sociedade Brasileira in Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 5 – nº 50, p. 22
[xxv]  HOBSBAWN.   Eric. J.   A Era das RevoluçõesEuropa 1789-1848 p. 87
[xxvi]  CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não  foi, p. 35
[xxvii]  Idem, p. 38
[xxix]   Idem
[xxx]  CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi, p. 43
[xxxi]  Idem, p. 47
[xxxii]  Ibidem, p. 46
[xxxiii]  MELO, Patrícia Pinheiro.  Imagens de Bolívar – Das Guerras de Independência ao Chavismo, p. 14
[xxxiv]  CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não  foi, p. 56
[xxxv]  Idem, p. 65
[xxxvi]  Ibidem, p. 62
[xxxvii]  Ibidem, p. 67
[xxxviii]  Ibidem, p. 67
[xxxix]  Ibidem, p. 67
[xl]  Ibidem, p. 67
[xli]  Ibidem, p. 68
[xlii]  Ibidem, p. 87
[xliii]  Ibidem, p. 89
[xliv]  Ibidem, p. 94
[xlv]  Ibidem, p. 97
[xlvi]  Ibidem, p. 98
[xlvii]  Ibidem, p. 100-101
[xlviii]  Ibidem, p. 102
[xlix]  Ibidem, p. 102
[l]  Ibidem, p. 34
[li]  Ibidem, p. 106
[lii]  Ibidem, p. 110
[liii]  Ibidem, p. 112
[liv]  Ibidem, p. 136
[lv]  Ibidem, p. 136
[lvi]  Ibidem, p. 139
[lvii]  Ibidem, p. 23
[lviii]  Ibidem, p. 25
[lix]  Ibidem, p. 45
[lx]  STEIN, Stanley J.  e  STEIN, Bárbara H.   A Herança Colonial da América Latina, p.107
[lxi]  Idem, p.112
[lxii]  LE GOFF, Jacques.   História e Memória, p. 217
[lxiii]  CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi, p. 141
[lxiv] PAGE, Joseph A.   A Revolução que Nunca Houve, p. 86
[lxv] CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi, p. 21
[lxvi] CORTEZ, Marcius.  O Golpe na Alma, p. 95
[lxvii] CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi, p. 142
[lxviii] Idem, p. 143
[lxix] Ibidem, p. 145
[lxx] Ibidem, p. 148
[lxxi] Ibidem, p. 149
[lxxii] Ibidem, p. 164