domingo, 18 de março de 2012

Canudos Destruído em Nome da República: Uma reflexão sobre as causas políticas do massacre de 1897
Jacqueline Hermann*

A história da guerra ou do movimento de Canudos tem sido incansavelmente contada ao longo dos últimos cem anos. Analisada em várias de suas possíveis dimensões, este episódio ensejou diversas interpretações e marcou tragicamente o processo de transição política que deu origem ao regime republicano brasileiro. A busca de explicações para a necessidade do extermínio de uma população que chegou a se estimar em 25.000 sertanejos miseráveis e mal armados produziu inúmeros trabalhos, dos quais, certamente, o clássico de Euclides da Cunha foi o que mais contribuiu para que a saga conselheirista fosse conhecida e discutida dentro e fora do Brasil.
Considerado um livro definitivo no processo de formação do pensamento socológico brasileiro, Os sertões, mais que construir uma história que acabaria se tornando uma espécie de matriz referencial para a interpretação do sentido de Canudos, manteve-se como um testemunho privilegiado dos questionamentos que dominaram os debates intelectuais no final do século passado. Ao refletir sobre uma guerra fratricida que opunha o litoral do país __ considerado avançado e civilizado __ ao interior de um Brasil que ainda conservava uma parte significativa de seu povo mergulhado no mais profundo atraso, Euclides da Cunha expôs de forma contundente uma fratura quase irremediável para o projeto nacional pensado pelos intelectuais que aderiram e defenderam com afinco a causa republicana.
Dividido entre a compaixão e a reprovação, embora este último aspecto tenha dado o tom de sua análise sobre Antônio Conselheiro, Os sertões foi obra que imortalizou e vulgarizou boa parte das discussões que permeavam os principais centros da intelectualidade brasileira na passagem do século XIX para o XX. Vale lembrar a marca indiscutível das teorias do médico baiano Raimundo Nina Rodrigues na determinação da “doença grave” do líder sertanejo, “documento raro de atavismo”, nas palavras de Euclides da Cunha, considerado por alguns especialistas como um dos mais fiéis discípulos do autor de A loucura epidêmica de Canudos.
Herdeiros de um conjunto de teorias que se estruturavam na Europa e que gradativamente, desde a primeira metade do século XIX, caminhavam para a reprovação social, cultural e moral dos grupamentos humanos oriundos da mistura de raças, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha tiveram no impressionante caso dos sertanejos de Canudos um laboratório privilegiado para o teste “definitivo” do efeito deletério e nefasto provocado pela miscigenação de que resultara esta espécie considerada então racialmente incompleta __ o sertanejo.
Se a busca de explicações “científicas” deu ensejo a elaborações que deixaram Canudos “sitiado pela razão”, do ponto de vista político, e no calor dos acontecimentos, a ousadia sertaneja chegou ao seu ápice com a morte do coronel Moreira César, líder da terceira expedição ao arraial e a primeira que incluía forças e comando federais, em março de 1897.
Mas, indo além do evidente peso desse episódio para o desenrolar dos acontecimentos que levaram ao extermínio definitivo dos conselheiristas, uma observação mais atenta das lutas políticas que marcaram esse momento delicado da recém-inaugurada República pode desvendar um conjunto de questões que jamais tiveram na resistência sertaneja seu foco privilegiado de tensão. Refiro-me, especificamente, ao tortuoso quadro político que marcou a passagem da liderança militar para o grupo político que, tendo à frente os cafeicultores paulistas, deu início ao primeiro governo civil do novo regime, em 1894.
Na verdade, este momento só tornava ainda mais explícitas as disputas em torno da legitimidade da liderança militar que proclamara a República, alvo de acirradas e continuadas críticas desde o primeiro momento da constituição do governo de Deodoro da Fonseca. A ação militar da proclamação e a falta de um reconhecimento mais amplo da legitimidade desse grupo político, além das dissenções internas do próprio Exército, tornaram extremamente frágil a adoção de um governo militar para a República brasileira. Se na luta contra a monarquia e todos os seus pressupostos o conjunto dos republicanos parecia unido, depois da proclamação o embate entre diferentes projetos políticos e institucionais opôs de forma definitiva pelo menos dois grandes grupos: militares e civis.
Quando Moreira César foi morto no sertão baiano, o primeiro governo civil e paulista da república, encabeçado por Prudente de Morais, já estava no seu terceiro ano. Nesse período, a oposição política do grupo militar que deixara o poder só fizera crescer e encontrara agora, na morte de um de seus mais ilustres representantes, um fortíssimo argumento para questionar a legitimidade dos verdadeiros princípios de um governo que não conseguia proteger suas instituições contra os defensores da restauração monárquica, forma como passaram a ser identificados os conselheiristas.

*  Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, UFF. Professora visitante de História
Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ.

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