domingo, 18 de março de 2012

Desconstruindo as memórias históricas: uma reflexão acerca das batalhas ideológicas e desencantos na construção da República brasileira


Anderson Holanda*

É do nosso conhecimento que a história sofre as demandas e influências do presente, das novas experiências e perspectivas teórico-metodológicas, dos novos documentos descobertos e dos paradigmas emergentes, e por isso, é reescrita constante do passado, é crítica permanente. A memória, por sua vez, como enfatiza o professor Dr. Antônio Torres Montenegro, é o congelamento da história que pode resultar na sua naturalização. Um exemplo claro de memória histórica são os livros didáticos (salvando raríssimas exceções) que circulam por esses brasis, congelando significados, sem ousar reescrever a história. Através deles somos informados que um grupo de militares do exército brasileiro, liderados pelo marechal Deodoro da Fonseca, destituiu o imperador e assumiu o poder no país, no dia 15 de novembro, e que a partir daí teria início a instável República Velha. Neles também são reforçadas memórias, como a de que sem o exército não poderia haver república, alijando o povo (mas que povo?) do processo, dando a impressão que não poderia ser de outra forma. Mas a história não é feita apenas de fatos e rotulações. Por trás dessas construções de memória acerca da República brasileira existiram verdadeiras batalhas ideológicas acerca da imagem que a República deveria assumir. É sobre estas batalhas que deterei minha reflexão.
Comecemos destacando o completo engano que é pensar a proclamação da República, em 1889, como um processo homogêneo. Não foi sem luta e choque de interesses entre forças políticas que se desenrolou a passagem do Império para a República. Na busca pela legitimação do novo regime político no Brasil, as batalhas são logo anunciadas pelos próprios aparatos ideológicos em que se apoiaram os três principais grupos republicanos, cada um se acolhendo em modelos que melhor se adequassem às suas aspirações. Emerge daí uma batalha simbólica “em torno da imagem do novo regime, cuja finalidade é atingir o imaginário popular para recriá-lo dentro dos valores republicanos”¹.
As três principais correntes, destacadas pelo historiador e cientista político José Murilo de Carvalho, combateram-se intensamente nos anos iniciais da República. São elas a jacobina, a liberal e a positivista. Esses três modelos foram interpretados e adaptados pela elite política republicana aos seus interesses, e às particularidades locais. “A versão jacobina, em particular, tendia a projetar sobre a Monarquia brasileira os mesmos vícios do Ancien Régime francês, por menos comparáveis que fossem as duas realidades”². Esta era a posição de parte da população urbana (pequenos proprietários, profissionais liberais, jornalistas, professores e estudantes, etc.). O próprio termo ‘jacobino’ já indica de onde tal corrente importa o seu modelo de República, não cabendo aqui discorrer sobre sua idealização. Mas um ponto em especial que merece ser assinalado – que muito tem a ver com o paradigma da cultura política – é a sua concepção de liberdade à antiga, a de participar coletivamente do governo, a liberdade do homem público.
Isso nos leva à segunda corrente republicana: a liberal, inspirada no modelo federalista americano. Sua moderna concepção de liberdade defendia a participação política por meio da representação, não diretamente como a versão jacobina; era a liberdade do homem privado. Em fins do século XIX, esse tipo de liberalismo encontra seu fundamento teórico no chamado darwinismo social. No Brasil, este modelo logo ganha simpatia dos proprietários rurais, sobretudo os paulistas, interessados no federalismo e na concepção individualista do pacto social que garantiria seus interesses particulares. A implantação de tal modelo seria a consagração da desigualdade por meio de um regime altamente autoritário. Havia ainda a corrente positivista, com seu ideal de progresso, fundamentado na lei dos três estados, em defesa da separação entre Igreja e Estado e da incorporação do proletariado à sociedade, apontando uma ditadura republicana como o caminho para a integração nacional. Por razões históricas específicas, o grupo social mais atraído por este modelo era o dos militares, sem anular a simpatia de professores, intelectuais e estudantes pelo modelo.
Como bem coloca José Murilo de Carvalho, o grande problema era a ausência do sentimento de comunidade no Brasil do início da República. Como pensar a identidade nacional e cidadania em um país que não superara, nem ao menos enfrentara um problema social como o da escravidão? Apesar das propostas de alguns abolicionistas como educação dos libertos e reforma agrária como meio de inserção dos ex-escravos à vida nacional, o modelo republicano a ser implantado, uma vez pensado pela elite, viria a excluir a grande maioria da população do direito político, sobretudo do direito de legislar. O positivismo encaixa como uma luva para essa elite, que se alia ao modelo liberal, configurando a República oligárquica que tanto desencantaria a geração intelectual da Primeira República. Tais reflexões sobre o imaginário da República no Brasil evidenciam aquilo que o historiador Rodrigo Patto Sá Motta destaca como “um traço da cultura política brasileira: frágil cidadania, pouco envolvimento da população com a coisa pública”³. Nesse sentido, a desconstrução de memórias congeladas em prol de uma reflexão crítica sobre nossa cultura política pode nos abrir algumas portas e fazer conhecermos melhor a importância do nosso papel enquanto cidadãos, nos ajudando a enxergar que temos que nos importar sim com a política, cabendo a cada um escolher entre a zona de conforto e/ou de conflito.                                                                                                                                                                                  .
* Graduando do curso de História na Universidade Federal de Pernambuco.
1. CARVALHO, José Murilo. A Formação das Almas: o imaginário da república do Brasil, p. 10
2. Idem, p. 26
3. SÁ MOTTA, Rodrigo Patto. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia. In Culturas Políticas na História, p. 35

2 comentários:

  1. Bem formulado. Apesar de que não se trata apenas de descongelar memórias...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. concordo professora, essa é apenas uma dentre várias perspectivas.. mas de que mais se trata, na sua opinião?

      Excluir