Anderson
Holanda*
É
do nosso conhecimento que a história sofre as demandas e influências do
presente, das novas experiências e perspectivas teórico-metodológicas, dos
novos documentos descobertos e dos paradigmas emergentes, e por isso, é
reescrita constante do passado, é crítica permanente. A memória, por sua vez,
como enfatiza o professor Dr. Antônio Torres Montenegro, é o congelamento da
história que pode resultar na sua naturalização. Um exemplo claro de memória
histórica são os livros didáticos (salvando raríssimas exceções) que circulam
por esses brasis, congelando significados, sem ousar reescrever a história.
Através deles somos informados que um grupo de militares do exército brasileiro, liderados
pelo marechal Deodoro da Fonseca, destituiu o imperador
e assumiu o poder no país, no dia 15 de novembro, e que a partir daí teria
início a instável República Velha. Neles também são reforçadas memórias, como a
de que sem o exército não poderia haver república, alijando o povo (mas que
povo?) do processo, dando a impressão que não poderia ser de outra forma. Mas a
história não é feita apenas de fatos e rotulações. Por trás dessas construções de
memória acerca da República brasileira existiram verdadeiras batalhas
ideológicas acerca da imagem que a República deveria assumir. É sobre estas
batalhas que deterei minha reflexão.
Comecemos
destacando o completo engano que é pensar a proclamação da República, em 1889,
como um processo homogêneo. Não foi sem luta e choque de interesses entre
forças políticas que se desenrolou a passagem do Império para a República. Na
busca pela legitimação do novo regime político no Brasil, as batalhas são logo
anunciadas pelos próprios aparatos ideológicos em que se apoiaram os três
principais grupos republicanos, cada um se acolhendo em modelos que melhor se
adequassem às suas aspirações. Emerge daí uma batalha simbólica “em torno da
imagem do novo regime, cuja finalidade é atingir o imaginário popular para
recriá-lo dentro dos valores republicanos”¹.
As
três principais correntes, destacadas pelo historiador e cientista político
José Murilo de Carvalho, combateram-se intensamente nos anos iniciais da
República. São elas a jacobina, a liberal e a positivista. Esses três modelos
foram interpretados e adaptados pela elite política republicana aos seus
interesses, e às particularidades locais. “A versão jacobina, em particular,
tendia a projetar sobre a Monarquia brasileira os mesmos vícios do Ancien Régime francês, por menos
comparáveis que fossem as duas realidades”². Esta era a posição de parte da
população urbana (pequenos proprietários, profissionais liberais, jornalistas,
professores e estudantes, etc.). O próprio termo ‘jacobino’ já indica de onde
tal corrente importa o seu modelo de República, não cabendo aqui discorrer
sobre sua idealização. Mas um ponto em especial que merece ser assinalado – que
muito tem a ver com o paradigma da cultura política – é a sua concepção de
liberdade à antiga, a de participar coletivamente do governo, a liberdade do
homem público.
Isso
nos leva à segunda corrente republicana: a liberal, inspirada no modelo
federalista americano. Sua moderna concepção de liberdade defendia a
participação política por meio da representação, não diretamente como a versão
jacobina; era a liberdade do homem privado. Em fins do século XIX, esse tipo de
liberalismo encontra seu fundamento teórico no chamado darwinismo social. No Brasil,
este modelo logo ganha simpatia dos proprietários rurais, sobretudo os
paulistas, interessados no federalismo e na concepção individualista do pacto
social que garantiria seus interesses particulares. A implantação de tal modelo
seria a consagração da desigualdade por meio de um regime altamente autoritário.
Havia ainda a corrente positivista, com seu ideal de progresso, fundamentado na
lei dos três estados, em defesa da separação entre Igreja e Estado e da
incorporação do proletariado à sociedade, apontando uma ditadura republicana
como o caminho para a integração nacional. Por razões históricas específicas, o
grupo social mais atraído por este modelo era o dos militares, sem anular a
simpatia de professores, intelectuais e estudantes pelo modelo.
Como
bem coloca José Murilo de Carvalho, o grande problema era a ausência do
sentimento de comunidade no Brasil do início da República. Como pensar a
identidade nacional e cidadania em um país que não superara, nem ao menos
enfrentara um problema social como o da escravidão? Apesar das propostas de
alguns abolicionistas como educação dos libertos e reforma agrária como meio de
inserção dos ex-escravos à vida nacional, o modelo republicano a ser
implantado, uma vez pensado pela elite, viria a excluir a grande maioria da população
do direito político, sobretudo do direito de legislar. O positivismo encaixa
como uma luva para essa elite, que se alia ao modelo liberal, configurando a
República oligárquica que tanto desencantaria a geração intelectual da Primeira
República. Tais reflexões sobre o imaginário da República no Brasil evidenciam
aquilo que o historiador Rodrigo Patto Sá Motta destaca como “um traço da
cultura política brasileira: frágil cidadania, pouco envolvimento da população
com a coisa pública”³. Nesse sentido, a desconstrução de memórias congeladas em
prol de uma reflexão crítica sobre nossa cultura política pode nos abrir
algumas portas e fazer conhecermos melhor a importância do nosso papel enquanto
cidadãos, nos ajudando a enxergar que temos que nos importar sim com a
política, cabendo a cada um escolher entre a zona de conforto e/ou de conflito. .
*
Graduando do curso de História na Universidade Federal de Pernambuco.
1. CARVALHO, José Murilo. A Formação das Almas: o
imaginário da república do Brasil, p. 10
2.
Idem, p.
26
3.
SÁ MOTTA, Rodrigo Patto. Desafios e
possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia. In Culturas Políticas na História, p. 35
Bem formulado. Apesar de que não se trata apenas de descongelar memórias...
ResponderExcluirconcordo professora, essa é apenas uma dentre várias perspectivas.. mas de que mais se trata, na sua opinião?
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