Quem seria o verdadeiro herói nacional?
Alzernan Elvis*
“Heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação coletiva.”¹
Eis uma definição exata do que representa um herói a uma nação, dada por José Murilo de Carvalho, em sua obra “A Formação das Almas”. Portanto, o herói é um elemento crucial para legitimação de regimes políticos. Ele representa o elo da formação de uma identidade nacional. É através deste que pode-se haver uma coesão do sentimento de tal identidade.
Ao ler a explanação de Carvalho sobre o herói da República brasileira, Tiradentes, parece impossível não se perguntar, ao menos, quem seria o verdadeiro herói nacional, de fato? Visto que, nesse caso, se trata de uma construção muito bem idealizada ao longo de anos na História do Brasil. Logo, percebe-se que se trata de mais uma “batalha de memória” da nossa História.
A escolha de um herói, no caso brasileiro, não se deu de maneira unânime. De início, pois implantada a República vários atores desse evento concorriam para ocupar esse cargo tão prestigiado – que representaria o mito de origem da República -, tínhamos os principais participantes do 15 de novembro: Deodoro da Fonseca, Benjamin Constant e Floriano Peixoto. No tocante a elegibilidade de qualquer um destes, mostrou-se os “calcanhares de Aquiles” de todos participantes dessa corrida. Deodoro tinha muito para desempenhar o papel de herói republicano, porém, nesta última palavra está a chave para sua derrota, pois detinha um incerto republicanismo, e também “era militar demais para que pudesse ter penetração mais ampla”², nos diz Carvalho; quanto ao Benjamin tinha o republicanismo inatingível, contudo, ele não tinha figura de herói, pois não era líder popular nem líder militar; O Floriano, apesar de ter tudo para ser o herói nacional, se inclinava demais aos republicanos jacobinos, desagradando os republicanos liberais, e também, dividia os militares – contrapondo Exército e Marinha.
Assim, se tornaria uma tarefa mais difícil e penosa, guiar o país com um regime recém-estabelecido e sem herói, sem uma identidade nacional. A crise de identidade era tratada como prioritária. Lembre-se que a participação popular na instauração da República é ínfima, praticamente, não existiu. Portanto, um herói não se pronunciou naturalmente e a escolha deveria servir perfeitamente aos interesses do Estado em instituir um exemplo/modelo de cidadão a ser seguido pela nação e a mesma deveria aceitá-lo, ou mesmo, elegê-lo.
Percebo como uma espécie de trégua entre os concorrentes do cargo de herói da República, a escolha de Tiradentes como herói da nação, que não é tão simples assim, todavia, em resumo, todos os protagonistas do 15 de novembro tinham apostado suas fichas e derrotaram-se mutuamente, numa tentativa de evitar maiores desgastes em detrimento da situação que passara a República em tal momento – era urgente a necessidade de promover tal herói e os seus principais atores estavam desqualificados. Tanto que recorre-se a um período anterior a instauração da República: a Inconfidência Mineira. Tome-se como uma simplificação grosseira. Pois, é óbvio que todos insistiram até o fim em suas vertentes, como temos esse debate em aberto até hoje, porém, o “herói real” da nação – Tiradentes – “encaixou” perfeitamente no papel por diversos fatores. Mas se deu, principalmente, por via prosélita do movimento mineiro, que cultivou no imaginário dos conterrâneos a memória do martírio vivido por Tiradentes.
Talvez, o único a deter o poder real de desalojá-lo do patamar que o Tiradentes alcançou, fosse a figura do Frei Caneca, que merecia melhor análise à feita por Carvalho, apesar do mesmo ter colocado Caneca de lado categoricamente, citando o caráter geográfico do eixo político mais influente, que é o centro político do Brasil, formado por Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, a partir da metade do século XIX. Pois, até a disputa de memória entre Pedro I, no ideário popular, foi vencida por Tiradentes facilmente. Todavia, seria difícil bater, o eleito, Tiradentes, devido a sua laboriosa construção idealizada, que parece bastante apelativa em vários momentos, porém, a maior associação, e talvez, principal argumento para vencer seus concorrentes, seja a imagem deste herói relacionada ao Cristo, levando a população a uma espécie de ritual cívico, que na descrição trazida à luz por José Murilo de Carvalho, nos revela um culto que beira um fanatismo religioso à causa:
“... O préstito saiu dos arredores da Cadeia Velha, em que Tiradentes estivera preso, prosseguiu até a praça Tiradentes e daí até o Itamaraty, onde Deodoro saudou os manifestantes. Acompanharam o desfile representantes dos clubes abolicionistas e republicanos, estudantes, militares, o Centro do Partido Operário – e, em destaque, os positivistas, levando em andor um busto do mártir esculpido por Almeida Reis. Presente também estava um misterioso Clube dos Filhos de Thalma. Era a celebração da paixão (Cadeia Velha), morte (praça Tiradentes) e ressureição (Itamaraty) do novo Cristo. Em celebrações posteriores, acrescentou-se ao final do desfile uma carreta para lembrar a que, em 1792, servira para transportar o corpo da “santa vítima” após o enforcamento. Era o “enterro” da nova via-sacra.”³
Não bastasse a simbologia que este já emitia em todo contexto do seu martírio, alia-se a simbologia cristã à sua figura. Parece-me exagerado. Mas é com essa imagem de Cristo que ele conquista, de fato, seu posto.
Assim, percebemos que se instituiu o herói nacional. Este não surgiu naturalmente, como um herói tradicional/autêntico. Entretanto, a ideia aqui não é a de responder ao título dessa reflexão (Quem seria o verdadeiro herói nacional?), mas estabelecer algumas relações e críticas e formular novas questões em torno do assunto que passou – e passa – distante do conhecimento do cidadão brasileiro até hoje, que, realmente, parece pouco se importar, motivado pelo simples fato de desconhecer tal discussão. Por exemplo, podemos pensar, como nos dias de hoje, a figura de um outro herói nacional poderia mudar o nossa identidade nacional, e também nosso calendário, e principalmente, a maneira de pensarmos a manifestação desse modelo heroico na construção da história do país. Em especial, podemos pensar no caso dos pernambucanos, com o cultivo da memória do herói Frei Caneca pelos mesmos, se este não fosse elevado a categoria de herói nacional, ao menos teríamos uma memória fortalecida a respeito do nosso 6 de março de 1817, que mnemonicamente nos é tão fraco, e por que não, tão desconhecido do seu próprio povo, eis que seria um resgate fortalecedor da cultura e espírito cívico do povo pernambucano.
* Graduando do curso de História na Universidade Federal de Pernambuco.
Referências bibliográficas
1. CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da república do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1990; p. 55.
2. Idem, p. 56.
3. Idem, p. 64.
Bom trabalho! Um puco redundante em alguns momentos... Penso que poderia ter aprofundado a questão: para que servem os heróis, e respondido essa questão no contexto da República e o que significou Tiradentes para a consolidação do regime.
ResponderExcluir9,0