domingo, 15 de abril de 2012

Bestializados ou bilontras? - Resenha do livro "Os bestializados" de José Murilo de Carvalho


Por Luiz Felipe


É notório o grande interesse do historiador José Murilo de Carvalho, entre outras coisas, pela questão da cidadania no Brasil. Sua obra " Cidadania no Brasil - o longo caminho" revela esse seu grande interesse pelo assunto. E não só nesta obra, como também em entrevistas concedidas para alguns programas de televisão - como ocorreu no programa do Jô, na Tv Globo, como também no programa Sintonia pela Tv Brasil - e em outras obras suas que abordam essa questão acerca de como foi e está sendo a construção da cidadania brasileira. Neste último caso, temos o exemplo de " Os bestializados - o Rio de Janeiro e a República que não foi" (Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3° ed. SP. Ed. Companhia das Letras, 1998. 196 páginas). Neste livro, o autor questiona a veracidade da frase de Aristides Lobo, na qual foi usada para compôr o título da obra, acerca da postura da população diante da Proclamação da República em 1889 e do novo regime republicano. Diante disso, José Murilo de Carvalho, analisa os diferentes sentidos que a questão da cidadania provocou em diversos setores da sociedade carioca. E aqui, passamos a perceber outro ponto característico importante na sua obra, que é análise centrada no Rio tendo como fundamento a tese que diz respeito às ressonâncias dos acontecimentos políticos, sociais e econômicos desta cidade pelo resto do país. O Rio de Janeiro é seu ponto de partida para entender os efeitos republicanos no Brasil. É nessa cidade que a construção da cidadania tem maiores proporções, partindo do príncipio de que as cidades são os lugares clássicos para o desenvolvimento da cidadania. Porém, na visão do autor, esse pontencial da cidade do Rio para esse desenvolvimento não ocorreu, expressa na tamanha indeferença de grande parte da população para com a República e com os assuntos políticos.
No primeiro capítulo, intitulado " O Rio de Janeiro e a República", José Murilo de Carvalho procura analisar, em primeira instância, as mudanças econômicas, sociais e políticas no Rio de Janeiro provocadas pela abolição da escravatura seguida por uma intensa onda imigratória e pela Proclamação da República. Tal análise corrobora para sua visão de que o Rio, mais do que qualquer outra cidade brasileira, foi a que mais sentiu as mudanças provocadas por esses acontecimentos. Junto com essas mudanças estruturais, vieram também inversões de certos valores. Se na monarquia, a honestidade no trabalho, por exemplo, era algo a ser prezado, na república isso foi desprezado dando lugar a uma corrida por um enriquecimento rápido e fácil. O zelo pela família foi igualmente desprezado. Os críticos desse autor, muito provavelmente devem usar esse seu argumento para taxá-lo de monarquista, uma vez que neste último regime havia mais "ordem" do que no período republicano.
Ainda neste capítulo, José Murilo de Carvalho vai entrar na questão da grande indiferença do povo pobre e negra para com a República. Sua explicação vai girar em torno do sentimento paternalista dessa categoria pelo Estado, advinda ainda desde o império e também pelo fato da grande exclusão da população no exercício político. A reação contra a vacina obrigatória em 1904 é um grande exemplo, citado pelo autor, para mostrar que o povo não era afeita ao novo regime. Na realidade, a participação popular se dava principalmente nas festas seculares, como o carnaval, religiosas, como a da Penha e da Glória, o que não deixa de ser muito diferente da nossa realidade hoje. Aliás, as festas são muito marcante na histórias de outras sociedades em outros tempo históricos. Segundo Roberto Catelli Júnioras festas são momentos de esquecer, fugir do cotidiano, inverter a ordem, deixar os problemas de lado, homenagear a desordem e, de maneira organizada ou não, realizar protestos”.1
Mas outro assunto abordado nesta parte do livro é a questão dos arranjos políticos entre as oligaquias em todo o país com o intuito de neutralizar as manifestações militar e popular (operários) na capital que só tinham perspectivas a nível local e não nacional. Portanto, foi necessário para o novo regime limitar o poder municipal ao exercício administrativo, dependendo, portanto, do apoio político do poder federal. Grande foi, segundo o autor, a corrupção e a manipulação dos votos nas eleições municipais. Tal questão mostra que a cidadania era uma coisa longe para grande maioria da população que não podiam votar.
No capítulo "República e cidadanias", José Murilo de Carvalho vai analisar mais detalhadamente o maxixe - mistura - ideológico que dizem respeito às diversas concepções de república e de cidadania por partes de vários setores da sociedade. Segundo o autor houve uma adaptação do liberalismo aos interesses dos vitoriosos da República com intuito de excluir a participação popular no exercício político, expresso na exclusão dos analfabetos e mulheres ao voto. A sustentação ideológica para tal exclusão era a importação francesa da concepção de cidadãos ativos e passivos, na qual só os primeiros eram considerados cidadãos plenos, no sentido de exercerem direitos políticos. Porém, havia aqueles republicanos mais radicais que recorriam à participação popular. Entretanto, a concepção de povo para estes, era muito homogêneo não levando em conta as divergências entre a população. Carvalho vai desenvolver, ainda neste capítulo, o conceito que para ele estar mais relacionado a uma estadania do que uma cidadania. Isto é, aquele desejo de alguns setores do povo que queriam se beneficiar dos direitos políticos devido a seu pertencimento à máquina burocrática do Estado. Tal posição era tomada por parte dos soldados que queriam de certa maneira conseguir o status de soldado cidadão e dos funcionários públicos. Os positivistas também tiveram um conceito sobre República e cidadania. Para estes, a República seria orientada por uma ditadura e que a cidadania era algo concedida e não conquistada pelo povo. É claro que esta conceção seria limitada. Para os operários, segundo o autor, restavam o engajamento na organização partidária, com o intuito de conseguir seus objetivos por vias legais. Por fim, Carvalho vai dedicar boa parte do capítulo em descrever a atuação dos anarquistas nesse processo. Divide esse grupo em anarquistas comunistas - que defendiam a luta por meio de sindicatos - e anarquistas individualistas - que defendiam a luta através de uma inicialtiva individual e espontânea. Os anarquistas rejeitavam o conceito de pátria diferentemente dos positivistas, cujo conceito era fundamental para a fundamentação de sua ideologia.
Passada a análise das diversas concepções de república e de cidadania para os mais diversos setores da sociedade, José Murilo de Carvalho vai analisar, no capítulo "Cidadãos inativos: a abstenção eleitoral", a postura do povo a partir das perspectivas de observadores estrangeiros - entre eles Luis Couty - e brasileiros  entre eles Raul Pompeía, Aristides Lobo. A visão que estes tinham, em primeira instância, era da inexistência de povo no Brasil. Porém, Carvalho refuta essa idéia, uma vez que desde o império havia manifestações populares. Tais agitações se tornaram agudas no início da República, expressas nas greves, passeatas. E quando essas manifestações se tornaram evidentes para tais observadores, estes diziam que elas eram promovidas por parte da população que não se enquadravam ao modelo europeu de povo. Porém, o autor irá concordar com Pompéia e Couty de que políticamente o povo inexistia, expressa na grande ausência dessa categoria nas eleições. Isto era em parte pela questão da exclusão da maioria da população que a máquina eleitoral fazia e da auto exclusão por parte dos eleitores. Este último fator se dava pela inutilidade dos votos e também do perigo, causado pelos capoeiras e capangas usados pelos candidatos no período das eleições.
A Revolta da Vacina é, segundo a visão do autor, emblemático no sentido de expressar as variadas visões e motivações acerca da república e da cidadania pelos diversos setores da sociedade. Tal assunto é abordado no capítulo "Cidadãos ativos: a Revolta da Vacina". Reação à medida do governo que impunha a vacinação - em uma época, como já foi relatado, sofrida por um surto de epidemias que era combatido pelos governos republicanos - a revolta tende a manifestar a defesa pelos direitos civis, uma vez que o Estado tinha ultrapassado, na visão dos revoltosos, os limites quanto a interferência na vida privada. Entretanto, o acontecimento não seguiu um único sentido, mas deu lugar a várias outras revoltas. Foi um movimento desconexo entre as partes que a compunham. Não vemos um sentido nas motivações entre o operariado, por exemplo, que divergiam quanto a origem das empresas, nas formas de relações com o Estado. Com este exemplo, José Murilo de Carvalho deixa claro que o povo estava longe de ser descrito como bestializado no sentido como sugere Aristides Lobo. Porém, essa agitação não teve como centro de interesse, por grande parte dos setores envolvidos, a participação direta na política, ou seja, não o intuito de reivindicar os direitos políticos. Mas, segundo o autor, esta revolta em torno dos direitos civis foi um importante passo para a formação da cidadania. Porém, como descreve o historiador, tal revolta foi efêmera.
Bestializados ou bilontras? Tal pergunta, usada para intitular o capítulo seguinte, revela o esforço de José Murilo de Carvalho em compreender a real postura do povo, ou melhor, dos povos diante do novo regime republicano. Procura explicar o porquê do envolvimento de grande parte da população nas  festas populares, religiosas e em organizações associativas. Segundo o autor, grande foi o esforço dos ativistas e líderes políticos em estimular no povo o desejo em se envolver de maneira séria nas questões políticas. Esforço esse frustrado,  uma vez que tudo era levado na brincadeira, como aconteceu com a Revolta da Vacina, que depois de acontecida foi levada num tom cômico nas festas carnavalescas. Para entender essa situação, o historiador vai tentar procurar uma explicação voltando para as naturezas das cidades, opondo as cidades antigas com as modernas. Em síntese, o autor - usando Max Weber para sua fundamentação teórica - vai afirmar que o grande contraste entre esses dois tipos de cidades é que a primeira é caracterizada pelos espírito integrativo, associativo em contraste com a segunda que é organizada a partir dos interesses individuais das pessoas. Outra diferença importante desses dois modelos é que as cidades ibéricas são enqudradas no segundo modelo. O Rio do início da República, porém, é uma fusão dos dois modelos, uma vez que a tradição moderna liberal não conseguiu romper definitivamente com as tradições associativas do período monárquico.
Por fim, ainda neste capítulo, José Murilo de Carvalho vai diferenciar o bilontra do bestializado. O primeiro seria aquela pessoa que sabia que a república era realmente uma farsa e além de não se envolver nas questões políticas, escarnece desse regime. O segundo, no entanto, seria a pessoa que, iludido, participava das questões políticas.
Estudando o passado a partir das questões que são formuladas pelo tempo presente, o autor revela sua preocupação acerca da construção da cidadania brasileira hoje e, portanto, nos deixa intrigados a respeito do assunto. Claro que comparado ao referente passado, a cidadania se desenvolveu consideravelmente. Mas a sociedade brasileira atual tem tido o mesmo desempenho em seu desejo na participação política? Ou será que observamos uma ressonância do pensamento de que se envolver nessas questões é algo inútil? A sociedade brasileira atual é mais bilontra ou bestializada?

NOTAS
1 - JÚNIOR, Roberto Catelli. Um olhar sobre as festas populares brasileiras. In: 500 anos de Brasil: histórias e reflexões. São Paulo: Scipione, 1999. P.53.

BIBLIOGRAFIA
Priori, Del Mary; Campos Flávio(...). 500 anos de Brasil: histórias e reflexões. Ed. scipione, São Paulo, 1999;
Carvalho, José Murilo de. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. Ed. Companhia das Letras, 1998. 


Um comentário:

  1. Bom trabalho. Apesar de permanecer um certo ar de fichamento e não de resenha, acho que conseguiu ir ao ponto, às idéias centrais do autor. Nota:8.0

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