Por Geraldo Candido Neto
Ao
contrário do que muitas pessoas imaginam, um texto historiográfico não precisa
seguir por um caminho monótono e enfadonho para atingir sua meta, e o
historiador José Murilo de Carvalho consegue provar isso de maneira competente
no seu livro "Os bestializados: o Rio de janeiro e a República que não
foi”. O autor consegue envolver o leitor enquanto expõe de maneira clara a sua
tese, aliando a boa escrita com uma pesquisa admirável sobre o objeto de
estudo, transformando essa obra numa referência não só sobre as primeiras
décadas da República como também um marco na historiografia brasileira,
conseguindo atingir tanto os estudiosos sobre o tema como qualquer pessoa que
apenas se interesse pelo assunto.
O
Rio de Janeiro, na aurora do século XX, desempenhava um papel privilegiado como
centro político e administrativo do país, abrigando importantes órgãos como a
sede do Banco do Brasil e a maior Bolsa de Valores, apesar de carregar vários
problemas de cunho político-social ocasionados pela conturbada transição do
Império para a República. Utilizando vários dados para sustentar seu estudo, o
autor mostra as transformações ocorridas na cidade do Rio, que alteraram não só
a política, mas trouxeram profundas mudanças no modo de vida da população,
proporcionado pelo desenvolvimento tecnológico e industrial aliado à
efervescência de ideologias trazidas da Europa que remodelaram os hábitos
sociais principalmente nas duas primeiras décadas do século XX. Esse crescimento
garantiu à sociedade do Rio de Janeiro uma enorme diversidade, um ambiente com
visões e opiniões bastante díspares e muito restrito no que se refere à
participação política, porém, apesar dessas limitações, surgem diversos
círculos de atuação política, canais alternativos que exemplificam a
participação do povo e mostram uma clara separação entre a política real e a
política formal. Dessa forma, o historiador desfaz a ideia de que a população
fluminense seria alheia às transformações políticas, simplesmente ela possuía
outras formas de se manifestar, já que seu campo de atuação na
"formalidade" fora minado pela própria República, que negou direitos
de participação política a uma parcela esmagadora da população.
Este
cenário era fruto da mal estruturada República implantada no país, que garantiu
– ainda que de forma precária – os direitos sociais, porém, relegaram
importantes direitos políticos, como o direito ao voto, negado à maior parte da
população. Implantada a República, não havia um projeto de sociedade, o Estado
não tinha a obrigação de fornecer educação ao povo, excluindo, por exemplo,
estrangeiros e ex-escravos da comunidade política e impedindo uma parte
considerável da sociedade de opinar e participar dos processos públicos, ou
seja, o povo assistia a tudo "bestializado". Neste ponto J. M. de
Carvalho destaca a organização das classes populares fora dessa política formal;
uma vez excluídos pelo Estado, essas camadas periféricas formaram suas próprias
"repúblicas", se conscientizaram politicamente segundo os seus
próprios costumes. Logo, já que uma participação formal na política era
praticamente impossível, não existia necessariamente um povo completamente
bestializado aos acontecimentos, e podemos atestar isso no ponto mais
importante do livro, que trata sobre a Revolta da Vacina.
A
Revolta da Vacina, segundo o autor, é um claro exemplo de como era possível
exercer a cidadania mesmo com todas as barreiras levantadas pelo governo,
confirmando a tese que mesmo tentando impedir o povo de agir na via política,
este acaba encontrando meios alternativos de manifestar suas opiniões e se
fazer ouvir, expondo suas ideias nas maneiras possíveis.
As
tentativas de alinhar o Rio de Janeiro aos padrões europeus culminaram numa
série de reformas urbanas e obras de saneamento, inspirados pelos ares da Belle
Époque, essa modernização, implantada pelo então presidente Rodrigues Alves com
apoio do prefeito fluminense Pereira Passos, só foi recebida positivamente pela
ala conservadora -- sendo chamada por parte da imprensa de "a
Regeneração" -- e uma parte da população alienada ao modo de vida
parisiense. Essa política visivelmente excludente é colocada pelo José Murilo
de Carvalho como catalisadora para as manifestações da população durante esse
período, apesar da cidade enfrentar problemas de saneamento, abastecimento de
água e higiene, que resultaram num surto de epidemias de varíola e febre
amarela, junto às de malária e tuberculose, o que eclodiu a Revolta da Vacina
foi a implantação da obrigatoriedade da vacinação, e acima de tudo a forma como
isso era feito. O governo tentava à vista de todos realizar uma verdadeira
limpeza pública, e para isto investiu intensamente em brigadas sanitárias que
não hesitavam em utilizar a força para invadir casas, interditar prédios, remover
os enfermos, desinfetar os lugares que, logicamente, ficavam situados nas
regiões mais pobres e consequentemente de maior densidade demográfica; estas
visitas geralmente ocorriam com a presença da polícia, garantindo o caráter
oficial do programa e evitando possíveis resistências. Estes gestos
autoritários por parte do governo não foram aceitos de forma passiva, as
medidas adotadas pelo governo do Rodrigues Alves causaram um enorme impacto no
dia-a-dia das pessoas, como lembra o próprio José Murilo de Carvalho: “[...] o
atestado de vacina era exigido para praticamente tudo: matrícula em escolas,
emprego público, emprego doméstico, emprego nas fábricas, hospedagem em hotéis
e casas de cômodos, viagem, casamento, voto etc.” [1]
Ainda que alguns realmente ficassem bestializados, enxergando apenas as
formalidades mascaradas do Estado, o autor mostra que essa Revolta contraria um
pensamento muito comum, defendido inclusive por alguns historiadores, de que a
população nos primeiros anos da república seria politicamente apática e alheia
aos acontecimentos, porém verificamos justamente o inverso, um povo que apesar
de marginalizado e propositalmente excluído ainda consegue ver a realidade por
trás das aparências e reage a isso da maneira que pode.
A
principal consequência advinda de todo esse processo de higienização da
sociedade foi um deslocamento maciço de trabalhadores populares, desempregados
e vários indivíduos das camadas mais pobres da sociedade para as periferias e
alto dos morros, e de certa forma esse era o resultado esperado, implantar uma
nova sociedade no Rio de Janeiro separando definitivamente a burguesia desses
subúrbios que nasciam margeando estradas, trilhos ferroviários e as localidades
mais adversas, invisíveis aos olhos daqueles que se sentiam os verdadeiros
citadinos, cidadãos legítimos que ocupavam o centro da cidade, e tentavam
esconder o universo de miséria e abandono que lhes cercavam criado por eles
mesmos.
José
Murilo de Carvalho é direto ao nos mostrar os resultados drásticos de uma
imposição de modelo político importado que não tivesse condições de ser
adaptado num país onde o próprio governo subtrai a participação popular e
ignora a opinião pública ao tomar suas decisões políticas, criando,
inevitavelmente, grupos com organização social próprio e que continuará se
chocando contra o Estado, pois, apesar de ocultos eles existem, e se mostram
presentes mesmo que precisem criar meios para isso.
[1] CARVALHO,
José Murilo. Os bestializados: o Rio Janeiro e a República que não foi. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Incompleto. Parece mais o comentário de 1 capítulo. Não desenvolve atese do autor nem seus principais argumentos.
ResponderExcluirNota: 5.0