CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não
foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
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Jéssika Adrielly
Redimensionando
a participação popular na transição para a República, José Murilo de Carvalho,
em Os Bestializados, abastece-nos com
uma série de consistentes reflexões concernentes as estruturas políticas do Rio
de Janeiro, então, capital política e administrativa do país. Refuta as
assertivas que pintam com as cores do imobilismo e da apatia as condutas
populares. Desse modo, é que as ideias suscitadas nesta obra são perpassadas
pela discussão atinente a construção da cidadania no Brasil.
Sob
a pecha de bestializados, essa “massa” foi caracterizada, pelos apologistas
republicanos, como desprovida de tradição cívica e de envolvimento com as
normas do mundo político. Em José Murilo de Carvalho a perspectiva é distinta,
afinal, “o povo sabia que o formal não
era sério. Não havia caminhos de participação, a República não era para valer.
Nessa perspectiva, o bestializado era quem levasse a política a sério, era o
que se prestasse à manipulação”.[1]
Aqui a participação política do povo é manifesta fora dos canais oficiais
da política, noutras instâncias e com seus próprios ritmos, portanto, greves,
quebra-quebra e arruaças eram comuns na cidade. Aliás, é precisamente da cidade
do Rio de Janeiro que vai se deter no primeiro capitulo do livro.
Eivada de conflitos de todo tipo, a capital
fluminense vivenciara um intenso recrudescimento de sua população, implicando
precarização das residências e das condições de vida, ao passo que convivia
também com dificuldades inflacionárias e a ampliação dos índices de
criminalidade. Eis o Rio de Janeiro do início da república, em certa medida,
caixa de ressonância do Brasil.
A
implantação do regime republicano não significou a redução da exclusão destas
camadas, ao contrário, representou, em alguns aspectos, continuidade ou mesmo
acréscimo. Convém uma digressão: é, aliás, por acentuar aspectos “modernos” do
império brasileiro que José Murilo de Carvalho vem sendo caracterizado por
alguns críticos de monarquista. Assertiva retrucada, “não era minha intenção defender a monarquia, eu não estava sendo
monarquista quando me manifestei” [2].
Para
corroborar a sua tese - “quem apenas assistia, como fazia o povo do Rio por
ocasião das grandes transformações realizadas a sua revelia, estava longe de
ser bestializado. Era bilontra”[3] - José Murilo de Carvalho
vai buscar no desenrolar da Revolta da Vacina um exemplo. Não encontrará, ao
modo de Sevcenko, “mentes insanas”. Multifacetada, o autor explicará a revolta
recorrendo aos padrões de moralidade das classes populares que resistiu às
ações invasivas do Estado republicano. Era contra a invasão do lar e da sua
privacidade que o povo que se mobilizava. Nesse sentido, a revolta
caracterizar-se-ia, fundamentalmente, por “razões
ideológicas e morais”.[4]
Essas
repúblicas, que se mantinham nos subterfúgios da cidade, e que não se deixavam
dominar inteiramente pela República Liberal, essas estruturas comunitárias – o
samba, o carnaval, as irmandades e etc.– não se encaixavam in totum ao
liberalismo dominante da política formal, são elas que, paradoxalmente, serão
caracterizadas como os elementos mais “autênticos” da cultura nacional.
As
incursões historiográficas de José Murilo de Carvalho na historiografia,
seguramente, produziram saldo positivo. Ainda que não sejam negligenciáveis as críticas
que vem sofrendo dos seus mais coevos interlocutores. A ideia que subjaz na
obra é que de fato o povo, apesar de não ser bestializado/tolo, foi de passivo.
O conceito de bilontra, nesse sentido, remove o povo do papel de espectador
passivo e coloca-o no de espectador ativo. Deliberadamente, escolheram não
participar. [5]
Seria, pois, o excesso de compreensão, e não sua insuficiência, que explicaria
a passividade do povo. Mas esta continua, nas linhas gerais de “Os
Bestializados”, como um dado. Sobrevém, na perspectiva de seus críticos, uma
representação “um tanto estática, baseada
na formulação da "Republica que não foi", vale dizer que não teve
representação ou participação política, que não construiu cidadãos e não teve
povo”[6]. O desinteresse do povo
pela política, deste modo, emerge como derivação do argumento. Assertiva, ao
menos, controversa.
Para
além de todas as possíveis objeções, a obra de José Murilo de Carvalho já se
converteu em parada obrigatória para os estudiosos da história do Brasil. Onde
os ‘visitantes’ encontraram uma interpretação bastante singular dos albores da
República e da cidadania no Brasil.
[1] CARVALHO, José Murilo de. Os
bestializados: o Rio de Janeiro e a Republica que não foi. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987, p.160.
[2] Entrevista com
José Murilo de Carvalho. Entrevista concedida em 9 de outubro de 1998 a Lucia
Lippi Oliveira, Marieta de Moraes Ferreira e Celso Castro.
[3] Ibidem.
[5] MAGALHÃES, Marcelo de Souza. Ecos da Política: A Capital
Federal, 1892 – 1902.
Niterói: UFF/ICHF (tese de
doutorado em História), 2004.
[6] BONAFÉ, Luigi. Como se Faz um herói republicano:
Joaquim Nabuco e a República. Tese de Doutorado: Orientadora, Ângela de Castro
Gomes, Universidade Federal Flumimense, 2008, p. 100.
Muito bom trabalho. Sintético e vai direto ao ponto e às controvérsias que suscitou. Parabéns!
ResponderExcluirNota: 9,5