sábado, 21 de abril de 2012


CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.


Jéssika Adrielly

Redimensionando a participação popular na transição para a República, José Murilo de Carvalho, em Os Bestializados, abastece-nos com uma série de consistentes reflexões concernentes as estruturas políticas do Rio de Janeiro, então, capital política e administrativa do país. Refuta as assertivas que pintam com as cores do imobilismo e da apatia as condutas populares. Desse modo, é que as ideias suscitadas nesta obra são perpassadas pela discussão atinente a construção da cidadania no Brasil.
Sob a pecha de bestializados, essa “massa” foi caracterizada, pelos apologistas republicanos, como desprovida de tradição cívica e de envolvimento com as normas do mundo político. Em José Murilo de Carvalho a perspectiva é distinta, afinal, “o povo sabia que o formal não era sério. Não havia caminhos de participação, a República não era para va­ler. Nessa perspectiva, o bestializado era quem levasse a política a sério, era o que se prestasse à manipulação”.[1] Aqui a participação política do povo é manifesta fora dos canais oficiais da política, noutras instâncias e com seus próprios ritmos, portanto, greves, quebra-quebra e arruaças eram comuns na cidade. Aliás, é precisamente da cidade do Rio de Janeiro que vai se deter no primeiro capitulo do livro.
 Eivada de conflitos de todo tipo, a capital fluminense vivenciara um intenso recrudescimento de sua população, implicando precarização das residências e das condições de vida, ao passo que convivia também com dificuldades inflacionárias e a ampliação dos índices de criminalidade. Eis o Rio de Janeiro do início da república, em certa medida, caixa de ressonância do Brasil.
A implantação do regime republicano não significou a redução da exclusão destas camadas, ao contrário, representou, em alguns aspectos, continuidade ou mesmo acréscimo. Convém uma digressão: é, aliás, por acentuar aspectos “modernos” do império brasileiro que José Murilo de Carvalho vem sendo caracterizado por alguns críticos de monarquista. Assertiva retrucada, “não era minha intenção defender a monarquia, eu não estava sendo monarquista quando me manifestei” [2].
Para corroborar a sua tese - “quem apenas assistia, como fazia o povo do Rio por ocasião das grandes trans­formações realizadas a sua revelia, estava longe de ser bestializado. Era bilontra”[3] - José Murilo de Carvalho vai buscar no desenrolar da Revolta da Vacina um exemplo. Não encontrará, ao modo de Sevcenko, “mentes insanas”. Multifacetada, o autor explicará a revolta recorrendo aos padrões de moralidade das classes populares que resistiu às ações invasivas do Estado republicano. Era contra a invasão do lar e da sua privacidade que o povo que se mobilizava. Nesse sentido, a revolta caracterizar-se-ia, fundamentalmente, por “razões ideológicas e morais”.[4]
Essas repúblicas, que se mantinham nos subterfúgios da cidade, e que não se deixavam dominar inteiramente pela República Liberal, essas estruturas comunitárias – o samba, o carnaval, as irmandades e etc.– não se encaixavam in totum ao liberalismo dominante da política formal, são elas que, paradoxalmente, serão caracterizadas como os elementos mais “autênticos” da cultura nacional.
As incursões historiográficas de José Murilo de Carvalho na historiografia, seguramente, produziram saldo positivo. Ainda que não sejam negligenciáveis as críticas que vem sofrendo dos seus mais coevos interlocutores. A ideia que subjaz na obra é que de fato o povo, apesar de não ser bestializado/tolo, foi de passivo. O conceito de bilontra, nesse sentido, remove o povo do papel de espectador passivo e coloca-o no de espectador ativo. Deliberadamente, escolheram não participar. [5] Seria, pois, o excesso de compreensão, e não sua insuficiência, que explicaria a passividade do povo. Mas esta continua, nas linhas gerais de “Os Bestializados”, como um dado. Sobrevém, na perspectiva de seus críticos, uma representação “um tanto estática, baseada na formulação da "Republica que não foi", vale dizer que não teve representação ou participação política, que não construiu cidadãos e não teve povo”[6]. O desinteresse do povo pela política, deste modo, emerge como derivação do argumento. Assertiva, ao menos, controversa.
Para além de todas as possíveis objeções, a obra de José Murilo de Carvalho já se converteu em parada obrigatória para os estudiosos da história do Brasil. Onde os ‘visitantes’ encontraram uma interpretação bastante singular dos albores da República e da cidadania no Brasil.








[1] CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a Republica que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.160.
[2] Entrevista com José Murilo de Carvalho. Entrevista concedida em 9 de outubro de 1998 a Lucia Lippi Oliveira, Marieta de Moraes Ferreira e Celso Castro.
[3] Ibidem.
[4]  [4] CARVALHO, José Murilo de.  Op. Cit, p. 135.
[5] MAGALHÃES, Marcelo de Souza. Ecos da Política: A Capital Federal, 1892 – 1902.
Niterói: UFF/ICHF (tese de doutorado em História), 2004.
[6] BONAFÉ, Luigi. Como se Faz um herói republicano: Joaquim Nabuco e a República. Tese de Doutorado: Orientadora, Ângela de Castro Gomes, Universidade Federal Flumimense, 2008, p. 100.

Um comentário:

  1. Muito bom trabalho. Sintético e vai direto ao ponto e às controvérsias que suscitou. Parabéns!
    Nota: 9,5

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