segunda-feira, 16 de abril de 2012


OS BESTIALIZADOS – O RIO DE JANEIRO E A REPÚBLICA QUE NÃO FOI



A obra ora estudada (OS BESTIALIZADOS – O RIO DE JANEIRO E A REPÚBLICA QUE NÃO FOI, de José Murilo de Carvalho, edição 2004, Editora Schwarcz, com 196 páginas) apresenta uma análise da população brasileira a partir da observação dos fatos que marcaram o Estado do Rio de Janeiro, então capital do país, no período compreendido entre os últimos dias do Império e a Primeira República ou República Velha, que vai da proclamação, em 1889, até a assunção de Getúlio Vargas, em 1930.

O texto descreve acontecimentos que levam o leitor a crer que, na verdade, a proclamação da república não surtiu os efeitos prometidos pelos republicanos e esperados por aqueles que acreditaram nessas promessas. A narrativa é dividida em cinco capítulos, assim discriminados: I – O Rio de Janeiro e a República; II – República e Cidadanias; III – Cidadãos inativos: a abstenção eleitoral; IV – Cidadãos ativos: a Revolta da Vacina, e; V – Bestializados ou bilontras?

Já na sua Introdução o autor deixa claro que a real intenção da obra não é discutir qual foi a intensidade da participação popular na Proclamação da República, mas que, pouco tempo depois de proclamada, a República já tenha mostrado suas falhas aos olhos desse povo e, embora consciente das poucas mudanças práticas ocorridas em sua vida com a chegada do novo regime, essa massa popular, habituada ao paternalismo estatal que, bem ou mal, supria algumas de suas necessidades mínimas, mostrou-se apática diante das frustrações e decepções causadas pelos vencedores republicanos.

Adentrando o primeiro capítulo nos deparamos com a narrativa da situação em que se encontrava o Rio de Janeiro, capital do Império, à época da Proclamação da República. Juntando-se às turbulências e dificuldades econômicas e políticas herdadas do antigo regime, o Rio de Janeiro estava vivendo, há cerca de um ano, as consequências da abolição da escravidão, e apresentava um quadro de crescimento descontrolado da população, que resultou em falta de estrutura básica de moradia e saneamento, falta de empregos para os novos trabalhadores assalariados, violência e disseminação de doenças.  Todos esses desatinos fizeram surgir movimentos sociais e políticos, como o jacobinismo, que procurava encontrar culpados pelas dificuldades vividas, mas que pouco apresentava como soluções plausíveis para o enfrentamento da situação que criticava. Surgiram também nesse período, face aos desequilíbrios causados pela crise econômica que se abateu sobre o país, principalmente pela queda do perco do café, manifestações classistas que paralisaram a capital do país.

No capítulo seguinte o autor trata de uma das principais bandeiras defendidas pelos republicanos, que se transformou em uma de suas maiores decepções: a cidadania. José Murilo afirma que, com a Proclamação da República, o Brasil passou a viver cidadanias distintas, que contemplavam a sociedade brasileira de forma discriminada, caso fossem seus membros detentores ou não de direitos civis e políticos. O autor aponta a existência de cidadãos ativos, senhores de direitos civis e detentores do poder do voto. Murilo indica, também, a existência dos cidadãos inativos ou comuns, aqueles que possuem os direitos civis da cidadania mas não os políticos. Uma importante constatação é aqui registrada: assim no Império como na República o voto foi vetado aos analfabetos, o que restringiu o universo votante brasileiro a 2% da sua população. Neste capítulo se constata, ainda, que o liberalismo republicano traz mais poderes e menos obrigações para o Estado, que por sua vez privilegia a aristocracia e os ricos, pois os pobres e iletrados continuaram na mesma. “As expectativas despertadas em certas camadas pelo advento do novo regime provinham de promessas democratizantes feitas nos comícios, nas conferências públicas, na imprensa radical. (...) Porém nunca expôs sistematicamente suas ideias sobre como seria a participação popular no novo regime”. Esta passagem do texto expõe com clareza o quadro que se definiu com a ascensão republicana e os transtornos dela decorrentes, quando surgiram movimentos políticos e classistas que tumultuaram todo o país, fomentando o surgimento de alternativas positivistas - que defendiam o funcionamento do Estado sem a participação direta do povo - bem como o aparecimento de movimentos socialistas e anarquistas, que defendiam a participação popular direta na administração do Estado, com ou sem a tutela deste.

No capítulo três o autor apresenta uma análise da apatia cívica que atinge os chamados cidadãos inativos do Rio de Janeiro, que vivem suas vidas alheios ao que se passa no mundo político da cidade. Intelectuais como Louis Couty, Blondel e Raul Pompéia definem o cidadão fluminense como uma pessoa que não se interessa pela política nem procura exercer a cidadania “conquistada”, abdicando da participação na vida e nas decisões mais importantes dos Estado. Entretanto, com os movimentos e agitações que demandam a participação popular durante toda a Primeira República, esses mesmos intelectuais, a exemplo de Raul Pompéia, são obrigados a redefinirem seus conceitos sobre a função do cidadão e a forma com que este exerce a seu civismo. Numa passagem interessante, Pompéia passa a crer que o problema não residia na ausência da participação do povo na rotina da cidade, mas na exacerbação dessa massa, na sua maioria má, por ser contrária à República e ao Florianismo. Também nesse capítulo são apresentados números que ratificam a baixa participação política do povo do Rio de Janeiro, ressaltando-se, ainda, que até mesmo esse quociente participativo envolve, em sua maioria, funcionários públicos sujeitos às pressões do governo.

O quarto capítulo aborda a Revolta da Vacina como um movimento que exemplifica a participação social e política do povo do Rio de Janeiro na Primeira República. Partindo de uma simples negativa do povo em atender dispositivos legais que tornaram obrigatória a aceitação da vacina contra a varíola no país, o movimento organizou-se a partir de interesses políticos de Lauro Sodré, ganhando as ruas do Rio e acabando por tornar-se um conflito armado que envolveu as forças de segurança e a população, resultando em baixas e prisões. Deste episódio, deduz-se que se resumiu a um embate de interesse político, com o emprego de chavões e consequentes enfrentamentos ocasionais, que encontraram na participação popular o combustível de que necessitavam para fundamentar e dar visibilidade aos seus reais interesses. O povo serviu como massa de manobra, como já havia afirmado Louis Couty e como foi realçado pelo próprio autor, quando afirmou que “A tendência geral, refletindo posição governista moderada, era ver a revolta como exploração inescrupulosa da população ignorante por parte de políticos e militares ambiciosos...”.

O quinto e último capítulo da obra suscita a discussão sobre o verdadeiro caráter oculto por trás aparente apatia cívica do povo do Rio de Janeiro, se este seria um bestializado, que assistiu inerte à Proclamação da República, ou se seria um bilontra, que não se envolveu no jogo político da Proclamação por saber que o mesmo não era para valer. E no afã de encontrar a resposta pertinente vão-se buscar as origens Weberianas da cidade medieval e da cidade ocidental, adentrando-se, por fim, na formação da identidade do povo fluminense com a chegada da Corte portuguesa, tudo para se chegar à conclusão de que este povo aprendeu a manter uma distância conveniente do Estado, visto aqui como “algo a que se recorre, como algo necessário e útil, mas que permanece fora de seu controle...”, e que a “apatia” percebida era tão somente uma forma desse povo bilontra externar a sua desaprovação perante o Estado. 

Concluindo, acredito que o autor generaliza, a partir da visão obtida com a situação vivida pelo Rio de Janeiro, as observações e reações do povo de todo o país diante das frustrações e decepções com o regime republicano. E essa generalização, acredito, é pertinente, a partir do momento em que o Rio era a capital e centro social e econômico do Brasil, espelho para os demais estados, e as mesmas repercussões que fatos como a abolição acarretaram no Rio, repetiram-se em outras capitais, que passaram a viver transtornos semelhantes.

Acredito, pelo exposto, que o povo brasileiro encontra na “bestialização” uma forma de conivência com o Estado, por julgar-lhe útil e necessário como um bom tutor.


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