domingo, 15 de abril de 2012

Os bestializados: uma obra para entender a formação da cidadania

Resenha: CARVALHO, José Murilo de. “Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi”. São Paulo: Companhia da Letras, 1987.




Monike Gabrielle de Moura Pinto

Considerada uma obra clássica da historiografia, Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, de José Murilo de Carvalho, busca compreender o caráter da cidadania formado nos primeiros anos da experiência republicana brasileira, inserido na questão da construção do Estado e da Nação. O livro é dividido em cinco capítulos, onde o autor dialoga com fontes primárias (textos da época, jornais e etc.) e obras historiográficas que atuam nesse campo de estudo. Trazendo, inclusive, dados estatísticos e censitários para possibilitar uma compreensão mais direta por parte do leitor.
No primeiro capítulo, intitulado “O Rio de Janeiro e a República”, o autor retrata o período de instável transição do Império para República (em especial a primeira década republicana) caracterizado por intensas transformações de natureza social, política, econômica e cultural. Pontuando as principais transformações, José Murilo de Carvalho põe como uma das mais contundentes, o elevado crescimento demográfico da época. Essa modificação teria sido resultado do fenômeno da intensificação do êxodo rural, da abolição da escravidão e do aumento da imigração. Diante disso, a antiga capital do Império vê-se tomada de pessoas que acabam formando uma massa mal remunerada ou até mesmo desocupada e sem remuneração, uma camada que ficou conhecida na época como os perigosos (jornaleiros, domésticos, ladrões, malandros, capoeira, prostitutas, etc.).  Além disso, esta população em vertiginoso crescimento ocasionou problemas habitacionais, tanto em termos de quantidade quanto de qualidade.
Outra modificação apontada por Carvalho tange o campo financeiro. O período é marcado pela febre especulativa, diante da política emissionista do novo governo. Uma característica forte era a ânsia de enriquecer a todo custo, comum à época. Outro reflexo dessa política seria a constante instabilidade cambial e, sobretudo, o desenfreado aumento do custo de vida no país em detrimento do aumento salarial, fenômeno que desestabilizou a sociedade como um todo (elite e povo). No tocante ao cenário político, o autor expõe que a instauração do Regime Republicano gerou uma expectativa, por parte das contra-elites e das parcelas excluídas politicamente, de uma ampliação de participação nas decisões políticas. Todavia, essa esperança não atingiu aplicação real: “A expectativa inicial despertada pela República, de maior participação, foi sendo assim sistematicamente frustrada”.[1]  O movimento que aconteceu no plano das ideologias e mentalidades também foi tema abordado: não houve no Brasil a produção de correntes ideológicas próprias, e sim uma importação de ideologias estrangeiras. Positivistas, anarquistas, liberais e socialistas serão os responsáveis pela elaboração do discurso político-ideológico dos primeiros anos da República. Já no campo de moral, Carvalho coloca que as transformações por quais passou a capital – altos índices de população marginal, desequilíbrio entre os sexos, baixa taxa de nupcialidade, muitos nascimentos ilegítimos, entre outras coisas – gerou um afrouxamento dos costumes e da moral da população: o que antes era implícito, encoberto, semiclandestino, se populariza e se legitima (perde-se a virtude da família interiorana).
A participação popular existente na capital republicana se restringia às práticas estabelecidas à margem da política oficial, vivenciadas nas festas populares, nas comunidades habitacionais (étnicas ou locais) e, posteriormente, a partir das associações anarquistas do operariado. Essa população pobre que atuavam à margem da política oficial, colocava-se terminantemente contrária ao republicanismo. Apesar de ter uma grande representação para o resto do país, o Rio de Janeiro estava vivenciando um turbilhão que limitava sua força política. A solução foi encontrada, justamente, a partir da redução da participação popular.
No segundo capítulo denominado “Repúblicas e cidadanias”, José Murilo afirma que esse período é marcado por uma dinâmica de ideias importadas da Europa que misturadas e contrapostas eram utilizadas para se adaptar ao novo contexto. A antiga capital imperial estava embebecida em valores burgueses (enriquecimento, materialismo), onde as finanças tinham presença garantida nas discussões de vários campos da sociedade, inclusive na política. Discorrendo acerca das mudanças eleitorais, Carvalho contrapõe a sociedade civil à sociedade política, onde a primeira seria marcada pelos direitos civis e de cidadania, mas não ao voto; a segunda abarcava tanto os direitos civis quanto o poder de votar, que era antes um dever que um direito. A República ao retirar o requisito de renda para que o cidadão tivesse direito ao voto, maquiou uma “expansão” da participação política, tendo em vista que a barreira imposta pela exigência da alfabetização era praticamente intransponível, como efeito do Estado não assegurar o direito à educação primária.
Apresenta-se, também, a disseminação das ideias republicanas antes da instauração do regime. É trazido o exemplo de Silva Jardim, que pregava uma ditadura republicana, tendo a figura do ditador como a representação da vontade coletiva (sendo o povo uma entidade abstrata e homogênea). Era forte também em seu pensamento a ideia de pátria (contrária ao separatismo e ao federalismo), numa visão integradora e comunitária da sociedade. A insatisfação dos militares pela diminuição dos seus direitos políticos, no final do século XIX, fez com que vissem na República a possibilidade de “eliminar ao máximo a distância que os separava do mundo civil através da reivindicação da condição de plenos cidadãos ativos” [2]. Utilizando do mecanismo que Carvalho denomina de Estadania, esses militares buscaram uma maior participação política sob o amparo do Estado. De acordo com Carvalho, outro grupo se apropriou dessa Estadania, foi o operariado estatal. Esses operários, sem se desligar do Estado, procuraram uma maior participação política e a implantação de leis trabalhistas que assegurassem seus direitos. Tanto os militares e operários como tantos outros defensores da República seguiam o ideário positivista, que via o Estado autoritário agindo com ação paternalista sobre a população: as obtenções de direitos não viriam como resultado de reivindicações particulares, mas como uma ação do Estado. Contrapondo-se a essa visão positivista, a perspectiva socialista se fundamentava na ideia de que o Estado deveria permitir uma maior participação do povo, pelo mecanismo representativo, isto é, um socialismo democrático. Mas a República colocada em prática no Brasil bloqueava tal ampliação, e por isso causa certo descontentamento e desencanto em relação ao Regime. Este fenômeno concorreu para a disseminação do anarquismo que defendia a ideia do desligamento do povo com a política, bem como da intermediação do Estado.
“Cidadãos inativos: abstenção eleitoral”, terceiro capítulo, vem através de testemunhos de nacionais e estrangeiros contemporâneos, retratar as discussões e os conceitos formulados sobre a existência ou de povo no Brasil republicano, discussão esta que permeia todo o livro. Elencando, por exemplo, o pensamento do francês Louis Couty que afirmava não existir povo no Brasil e de Blondel, também francês, que dizia que o povo do Rio de Janeiro não tinha consciência do que acontecia politicamente. Isso retrata um preconceito dos europeus em relação à sociedade do Brasil, entretanto, essa ideia não se restringia a eles, florescia também no seio da sociedade brasileira, como o fez Aristides Lobo com a sua famosa frase: “o povo assistiu a tudo bestializado”, na ocasião da Proclamação da República. Todavia, a ação do povo que acontecia constantemente, por meios extra-oficiais (tais como greves operárias e passeatas), acabou desmontando as teorias de sua passividade, então, de “uma afirmação inicial de apatia, de inexistência de povo, passa-se então para outra, que afirma a presença de elementos da população politicamente ativos, mas que não se enquadravam no conceito de povo que os observadores tinham em vista”. [3] Isto é, esse povo não se enquadrava aos considerados cidadãos nem aos olhos dos estrangeiros nem dos dirigentes republicanos.
Carvalho faz um tópico, “O povo dos censos”, onde traz estatísticas para demonstrar a ocupação da população ativa do Rio de janeiro nesse período. É detectada que a maioria esmagadora (cerca de 50%) estava dentro da categoria de operários e que só cerca de um 1% da população pertencia à elite social, ficando o restante dividido entre duas classes intermediárias em proporções mais ou menos iguais.  Em outro tópico, “O povo político”, o autor discorre sobre a exclusão da maioria da população do direito político ao voto. Além dos 80% que se encontravam à margem das decisões políticas pelas diversas normas que limitavam o direito ao voto, a pequena parcela que detinha a posse do voto possuía cidadãos que preferiam alienar esse direito. Ou seja, existia no seio dessa parcela a auto-exclusão. Isso se explica pelo temor e indignação que as eleições causavam: temor, ocasionado pelo perigo que existia em votar, por causa de presença de capangas e capoeiras contratados pelos candidatos para coagir os eleitores e garantir os resultados; e indignação, pelas constantes fraudes eleitorais. “Assim, além de mínima a participação eleitoral, o processo era totalmente deturpado”.[4]
O quarto capítulo José Murilo nomeia de “Cidadãos ativos: a revolta da vacina”. Nele se busca a consciência do povo carioca em relação aos direitos e deveres dos cidadãos frente ao Estado. O autor utiliza da Revolta da Vacina, ponto culminante da expressão popular, para trazer de volta a discussão da inatividade da cidadania brasileira. O autor inicia o capítulo retratando o contexto político da época de transição do governo de Campos Sales para o governo Rodrigues Alves. O novo governo levou à prática ações de caráter financeiro e, sobretudo, de reformas estruturais da cidade. O governo encabeça um projeto para realização de obras de caráter sanitário, estético e de higiene da cidade, além de campanhas de prevenção e contensão de epidemias, com o auxílio do engenheiro Pereira Passos e do médico Oswaldo Cruz. Nessas campanhas foram realizadas visitas domiciliares, interdição de casas e até mesmo suas demolições, o que causou uma forte movimentação na cidade e perturbou a vida de muitas pessoas. Após essa breve descrição do contexto, o autor divide a obra em três tópicos que visam apresentar o movimento revoltoso, seus participantes e as suas principais causas.
No primeiro ponto, denominado “A revolta” é feita uma rica descrição dos embates da Revolta. Começa pela luta pela implantação da obrigatoriedade da vacina e segue narrando os desdobramentos decorrentes desse tema, tais como as discussões que aconteceram no congresso sobre a obrigatoriedade da vacina (pois tinha recebido listas de assinaturas contra isso) e o papel da imprensa na campanha contra a obrigatoriedade. Aprovada, o cidadão não tinha como escapar, pois era necessário comprovar que havia sido vacinado para pudesse ter acesso a vários serviços. Houve, então, a reação violenta do povo e os contrataques e repressão por parte do governo. No segundo tópico, “Os revoltosos”, o autor busca identificar a identidade dos participantes da Revolta. O autor explica que é difícil identificar os rebelados por inúmeros motivos, mas pontua duas visões: uma dos que simpatizavam com o movimento, a qual tem o povo como uma massa homogênea lutando contra a tirania e autoritarismo do Estado; a outra, dos que apoiavam o governo, tinha a imagem negativa dos participantes, como um bando sem instrução e passível de manipulação por agitadores políticos. Elenca-se a oposição e os operários como os principais participantes, posteriormente os militares e ainda a camada mais miserável (os perigosos), mas o que finalmente se constata é que o perfil ou identidade desses revoltosos era bastante diversificado, se modificando com o desenrolar da revolta. Por fim, no tópico “Os motivos”, são listadas algumas das possíveis causas do movimento, tais como o fator econômico e de urbanização e a mobilização militar, por exemplo. Mas, o autor vai desconstruindo essas percepções e coloca como a mais forte causa da Revolta a indignação moral, a qual conseguiu unir tão variados setores da sociedade em prol de um movimento único. A ideia de uma “invasão” a um local íntimo, como é o lar, para que os moradores recebessem forçosamente a vacina que era dita em tantos discursos como maléfica, perturbava sobremodo a moral do povo. Carvalho afirma: “Para o povo, os valores ameaçados pela interferência do Estado eram o respeito pela virtude da mulher e da esposa, a honra do chefe de família, a inviolabilidade do lar”. [5] O autor conclui que independentemente da intenção real dos seus participantes, a Revolta da Vacina caracteriza-se como um movimento que visava assegurar os direitos civis e que por isso teve a adesão geral. O que se conclui aqui é que esses cidadãos, considerados inativos, foram capazes de tomar iniciativas e inferir sobre coisas lhe dizem respeito.
O último capítulo do livro recebe a nomeação de “Bestializados ou bilontras?”, onde Carvalho vem finalizar o que ele buscou conceituar e esclarecer durante toda a obra: o cidadão, o povo brasileiro e seu papel político. O autor aponta que não só a elite e os estrangeiros davam ao povo brasileiro o caráter de população inativa. Até mesmo líderes radicais relatavam a apatia do povo. Havia no comportamento da massa elementos que se dissociavam do modelo de cidadão desejado tanto pelos líderes da classe operária quanto da elite, pois idealizavam um cidadão ativo, consciente de seus direitos e deveres, capaz de se organizar para agir em prol de seus interesses, entretanto “vimos que este cidadão de fato não existia no Rio de Janeiro”[6]. Na verdade o que se verifica é que esses cidadãos inativos revelavam-se de grande iniciativa, mas em eventos e manifestações de natureza a-política (de cunho religioso e também profano, como o carnaval). Além dos eventos, era notável a união e ação dessa camada em associações religiosas e de ajuda mútua. Porém, as ações encabeçadas por essa parcela “inativa” se davam por fora dos canais formais, não se buscava inferir no Estado (nem direta, nem representativamente). É aí que se contrapõe a ideia de povo bestializado à de povo bilontra. Pois, tendo a noção de que a República não era para valer, era uma farsa, que não lhe cabia, o povo decide não participar, prefere apenas assistir. Isto é, o povo não se colocava como massa de manobra passível de manipulação (o que seria uma atitude de bestializado), mas sim se comportava conscientemente, como um bilontra que era.
Sem dúvidas que essa clássica obra da historiografia brasileira é de indispensável leitura não só para os que atuam na área, como também para quem tem o interesse de conhecer melhor esse importante momento da história nacional, tendo em vista que José Murilo de Carvalho apresenta de forma ímpar e agradável um texto que abarca muito bem as especificidades desse período tão importante na construção da nossa história.


NOTAS:
[1] CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Pauo: Companhia da Letras, 1987. p. 37.
[2] Idem. p. 49.
[3] Idem. p. 72.
[4] Idem. p.88.
[5] Idem. p. 136.
[6] Idem. p. 141.