terça-feira, 17 de abril de 2012

CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.


Thiago Silva Paz

No seu livro “Os bestializados: o Rio Janeiro e a República que não foi.”, o historiador José Murilo de Carvalho discute como, a partir dos primeiros anos após a Proclamação da República, diversas mudanças sociais, assim como políticas, econômicas e culturais ocorreram no Rio de Janeiro e suas consequências.
Com a República, se multiplicaram as promessas de maior participação política, e com isso, um aumento no número das manifestações. Os militares do período inicial da República experienciaram do poder que lhes havia escapado desde o período regencial e tinham a percepção de que seu papel era messiânico, no sentido de que a eles caberia a salvação da pátria, e que por tal característica poderiam agir em quaisquer instâncias que desejassem; enquanto isso, a classe operária se iludia com as promessas feitas pelos representantes do novo governo e buscavam então formar partidos que os representassem. Outros grupos, como os capoeiras, tiveram sua situação comprimida, enquanto os anarquistas, por exemplo, acabaram que vinham de outros países acabaram sendo enviados compulsoriamente de volta aos seus países de origem.
No campo das ideias, houve uma abertura ao novo, num movimento onde “Misturavam-se, sem muita preocupação lógica ou substantiva, várias vertentes do pensamento europeu”, e esse movimento foi acompanhado também pela Intelligentsia no que diz respeito às reflexões sobre política. Uma nova postura moral também foi admitida, no sentido da promoção do ideal de liberdade, que foi assimilado pelas pessoas, e mesmo o desejo de enriquecer de maneira honesta e rapidamente ganha uma valorização maior. Acontece o que José Murilo de Carvalho classifica como a “vitória do espírito do capitalismo desacompanhado da ética protestante”. Mesmo as práticas cotidianas sofreram alterações significativas, ligadas principalmente a ideia de liberdade, e comportamentos antes vistos de maneira questionável ganharam nova significação com a República, foi a passagem da clandestinidade à legitimação de certos comportamentos.
O posicionamento do proletariado com relação à Monarquia, ao contrário do pensamento que buscava se instaurar, e que via na República um horizonte político mais favorável que o promovido pela Monarquia, era de plena simpatia, decorrente da abolição. Dessa maneira, os republicanos buscavam blindar pobres e negros, fazendo uso de práticas coercitivas como a perseguição, como no caso dos bicheiros e dos capoeiras. Como consequências dessas transformações, pode-se situar o problema central na necessidade de conseguir um outro pacto de poder que garantisse alguma estabilidade. Nesse cenário, as ideologias, antes concentradas em círculos restritos, como o liberalismo e o positivismo já presentes antes da proclamação, se multiplicam e se espalham: o socialismo, através dos jornais, e o anarquismo, que ganha bastantes adeptos entre a classe operária brasileira, e também entre os estrangeiros.
O ímpeto que tomou os intelectuais, ávidos por passarem da teoria à práxis política, esbarrou nas dificuldades enfrentadas pelo Rio de Janeiro ao ter de lidar com uma nova forma de vida, caracterizada pela impessoalidade, pelo livre comércio normatizado burguês, típicos das cidades europeias, mas que contrastava com a tradição provinciana ali vigente; era um conflito que se colocava, mesmo do ponto de vista ético, entre duas formas distintas e não raro conflitantes, e que derivava da parca organização social do Brasil, que oscilava entre garantir direitos sociais, e ainda que de maneira limitada, enquanto inviabilizava direitos políticos elementares, como o direito de voto que garantiria a possibilidade de o povo eleger seus representantes.
Poucos anos antes da abolição se concretizar uma reforma eleitoral derrubara a restrição ao voto de acordo com as posses financeiras, mesmo que sob a condição da necessidade de alfabetização, e os militares, tendo sido excluídos de seus direitos políticos, e diante de um governo corrupto, organizaram-se e conseguiram derrubar o Império; a figura de Silva Jardim foi fundamental para legitimar o novo governo, uma vez que este tratou de reunir o povo, e mesmo que posteriormente seus méritos não tenham sido reconhecidos e ele tenha sido afastado pelo novo governo que se instalou.
Um problema imediato após a Proclamação da República foi a ausência de um projeto social concreto, o que fez com que este trabalho de articulação acabasse por ser atribuído aos funcionários do antigo governo, que agiam dentro do novo governo com os mesmos princípios do antigo, ou seja, com preceitos liberais.
A caracterização do povo como bestializado, inerte, diante do novo panorama político que se formou com a República foi alimentada por práticas como as estabelecidas pela Constituição de 1891, que não tornava obrigado ao Estado dar educação ao povo, o que fez com que ex-escravos e estrangeiros, por exemplo, permanecessem fora da comunidade política, e esse quadro ilustra algumas razões pelas quais as classes populares preferiam ainda a Monarquia à República.
O governo republicano, objetivando sua estabilidade e tranquilidade para negociações com o exterior e implementação do novo pacto de poder, procurou tirar os militares do jogo e reduzir o nível de participação popular, além de trazer para seu lado as oligarquias, o que lhes garantiria maior solidez política, enquanto colocava o povo numa situação de inação política, que por conseguinte o separava ainda mais dos seus ditos representantes, sob a justificativa de que este dificultava a implementação da República, e tais práticas culminariam na instalação de vícios políticos como relações baseadas em desejos pessoais que evoluíam para práticas corruptas que acabavam por aumentar ainda mais o fosso político existente entre os republicanos e o povo.
Os primeiros anos da República foram marcados por grandes tensões que tomavam conta da capital, com riscos de fragmentação política e com a crise do café, que ameaçava a economia e elevava a dívida externa. Para conter essa instabilidade era preciso reduzir a participação da capital, o que significaria primeiro, a retirada dos militares do governo e, depois, a redução do nível de participação popular. Campos Salles, e sua política de estados, conseguiu diminuir a participação da capital, com medidas como a dissolução da Câmara de Vereadores, o Código de Posturas e o autoritarismo ilustrado de Oswaldo Cruz e Pereira Passos, ao torná-la indesejada e pouco atrativa; governo municipal e representação dos cidadãos eram distantes e as atividades do povo permaneciam politicamente inexpressivas. Foi criado pela República um novo Rio, domesticado e que buscava inspiração em Paris, que adentrava a chamada “belle époque” com recursos disponíveis para as reformas urbanas, graças às medidas econômicas de Campos Salles.
Mas se esse novo Rio, inspirado por demais nos moldes europeus e, logo, insatisfatório à sua própria realidade, só aumentava a divisão social; as obras incomodaram a população, culminando na Revolta da Vacina, em 1904, e que contou com a participação de militares e populares. Mas uma vez que os militares foram contidos, a revolta se mostrou multifacetada, no sentido de que havia participação, não apenas do operariado, como também das camadas populares que atuavam em contextos distintos. Segundo José Murilo, apesar de discordâncias historiográficas sobre as razões para a revolta, esta teria ocorrido essencialmente devido à obrigatoriedade da vacina expressa em lei, já que antes as pessoas estavam se vacinando em número cada vez maior. "A República se aplicara em importar a parafernália institucional norte-americana. Havia uma constituição que garantia os direitos civis e políticos dos cidadãos, havia eleições, havia um parlamento, havia tentativas de formar partidos políticos. A mesa estava posta por que não apareciam os convivas? Onde estavam eles?” A essa pergunta, José Murilo de Carvalho apresenta como resposta a constatação de que o problema residia no fato de termos importado um regime político estrangeiro que não considerava em sua hierarquia a participação popular, mostrando-se insatisfatório na medida em que cabia ao Estado decidir quem poderia ou não ser considerado cidadão. E o quadro se revelava ainda mais preocupante quando se percebia que, somados todos os excluídos politicamente, inclusos militares, analfabetos, mulheres entre outros grupos, mais de oitenta por cento da população perderia sua cidadania. Essa situação gerava, por parte dos que podiam votar, um desinteresse e um afastamento da práxis política. "Os representantes do povo não representavam ninguém, os representados não existiam, o ato de votar era uma operação de capangagem", o que resultou na ausência de partidos políticos legítimos.
Mas ao contrário do que se pode pensar, havia participação política, e ela se dava quando o povo optava por expressar seus descontentamentos com greves, promovendo quebra-quebra e outras formas de manifestação que causavam tumulto na cidade, numa forma de comportamento que não se adequava aos moldes desejados pelos reformadores da elite. Esses moldes diziam respeito à ideia comum da figura do cidadão ativo, consciente de seus direitos e deveres, capaz de organizar-se para agir em defesa de seus interesses, pelo reformismo parlamentar ou pelo radicalismo da ação econômica.
Nesse sentido, a Revolta da Vacina não apresentava lideranças ou mesmo planejamento, pois coube aos diversos pequenos grupos que se manifestavam por seus interesses, a condução dos acontecidos, que mesmo não diretamente relacionados, representavam interesses comuns entre os grupos. A revolta não ambicionava derrubar o governo republicano, mas representava a insatisfação daqueles que se sentiram frustrados em seu desejo por participação política e cidadania; a revolta deveria mostrar ao Estado que o povo delimitava a autoridade do governo, atitude diante da qual os republicanos reagiam com extremada violência. "Estava sendo violado um direito que o sistema republicano deveria, por sua própria essência resguardar. Ao não fazê-lo, ao violá-lo abertamente, o governo colocava-se contra seus próprios princípios, colocava-se na ilegitimidade e ilegalidade, tornando então justificável e justificado o recurso à força."
Uma vez distanciado da política, o povo se organizava nos domínios da cultura, e foi através de manifestações populares que o povo se manifestava. A política havia se mostrado como uma mera abstração burocrática, não existia para ser respeitada, e a figura do bestializado é, nesse contexto, representada pelo indivíduo que, mesmo não representado, ou impedido de participar dessa forma política, ainda a levava em consideração. O Estado não agia em prol da sociedade, e a única forma de sobreviver a essa situação era aceitando-a desinteressadamente e expondo suas incongruências ocasionalmente. O indivíduo que assim conseguisse agir era denominado bilontra.
Enquanto o bestializado é o indivíduo que aceita ser a massa de manobra, o cliente do coronel, o bilontra é o indivíduo que percebe que a República “não é para valer”. Ele, sabendo disto, não entra no jogo; supostamente o mais politizado, ele não participa do processo, pois sabe que essa forma de política não é realizável. Para José Murilo, o brasileiro é, historicamente, desinteressado por política. Por vezes ele reproduz a memória propagada pelo Estado Novo de que a República Velha era caótica e o Liberalismo tão incapaz que seria mais conveniente uma república autoritária, posição que parece um tanto exagerada quando se volta o olhar ao proveito tirado pelas elites da República Velha, por exemplo. A percepção que fica é que, apesar da qualidade inegável de seu trabalho, José Murilo peca por fazer algumas generalizações e suposições pouco rigorosas a respeito da extensão do que ocorria no Rio de Janeiro, além de colocar o povo numa posição demasiado apática.

Um comentário:

  1. Um pouco confuso em alguns momentos, sem conseguir deixar claro que argumentação queria desenvolver... Mas acho que pegou o espírito do livro, ao final.
    Nota: 8.0

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