Thiago Silva Paz
No seu livro “Os
bestializados: o Rio Janeiro e a República que não foi.”, o historiador José Murilo de Carvalho
discute como, a partir dos primeiros anos após a Proclamação da República,
diversas mudanças sociais, assim como políticas, econômicas e culturais
ocorreram no Rio de Janeiro e suas consequências.
Com a República, se
multiplicaram as promessas de maior participação política, e com isso, um
aumento no número das manifestações. Os militares do período inicial da
República experienciaram do poder que lhes havia escapado desde o período
regencial e tinham a percepção de que seu papel era messiânico, no sentido de
que a eles caberia a salvação da pátria, e que por tal característica poderiam
agir em quaisquer instâncias que desejassem; enquanto isso, a classe operária
se iludia com as promessas feitas pelos representantes do novo governo e
buscavam então formar partidos que os representassem. Outros grupos, como os
capoeiras, tiveram sua situação comprimida, enquanto os anarquistas, por
exemplo, acabaram que vinham de outros países acabaram sendo enviados
compulsoriamente de volta aos seus países de origem.
No campo das ideias, houve uma
abertura ao novo, num movimento onde “Misturavam-se, sem muita preocupação
lógica ou substantiva, várias vertentes do pensamento europeu”, e esse
movimento foi acompanhado também pela Intelligentsia no que diz respeito às
reflexões sobre política. Uma nova postura moral também foi admitida, no
sentido da promoção do ideal de liberdade, que foi assimilado pelas pessoas, e
mesmo o desejo de enriquecer de maneira honesta e rapidamente ganha uma
valorização maior. Acontece o que José Murilo de Carvalho classifica como a
“vitória do espírito do capitalismo desacompanhado da ética protestante”. Mesmo
as práticas cotidianas sofreram alterações significativas, ligadas
principalmente a ideia de liberdade, e comportamentos antes vistos de maneira
questionável ganharam nova significação com a República, foi a passagem da
clandestinidade à legitimação de certos comportamentos.
O posicionamento do
proletariado com relação à Monarquia, ao contrário do pensamento que buscava se
instaurar, e que via na República um horizonte político mais favorável que o
promovido pela Monarquia, era de plena simpatia, decorrente da abolição. Dessa
maneira, os republicanos buscavam blindar pobres e negros, fazendo uso de
práticas coercitivas como a perseguição, como no caso dos bicheiros e dos
capoeiras. Como consequências dessas transformações, pode-se situar o problema
central na necessidade de conseguir um outro pacto de poder que garantisse
alguma estabilidade. Nesse cenário, as ideologias, antes concentradas em
círculos restritos, como o liberalismo e o positivismo já presentes antes da
proclamação, se multiplicam e se espalham: o socialismo, através dos jornais, e
o anarquismo, que ganha bastantes adeptos entre a classe operária brasileira, e
também entre os estrangeiros.
O ímpeto que tomou os
intelectuais, ávidos por passarem da teoria à práxis política, esbarrou nas
dificuldades enfrentadas pelo Rio de Janeiro ao ter de lidar com uma nova forma
de vida, caracterizada pela impessoalidade, pelo livre comércio normatizado
burguês, típicos das cidades europeias, mas que contrastava com a tradição
provinciana ali vigente; era um conflito que se colocava, mesmo do ponto de
vista ético, entre duas formas distintas e não raro conflitantes, e que
derivava da parca organização social do Brasil, que oscilava entre garantir
direitos sociais, e ainda que de maneira limitada, enquanto inviabilizava
direitos políticos elementares, como o direito de voto que garantiria a
possibilidade de o povo eleger seus representantes.
Poucos anos antes da abolição
se concretizar uma reforma eleitoral derrubara a restrição ao voto de acordo
com as posses financeiras, mesmo que sob a condição da necessidade de
alfabetização, e os militares, tendo sido excluídos de seus direitos políticos,
e diante de um governo corrupto, organizaram-se e conseguiram derrubar o
Império; a figura de Silva Jardim foi fundamental para legitimar o novo
governo, uma vez que este tratou de reunir o povo, e mesmo que posteriormente
seus méritos não tenham sido reconhecidos e ele tenha sido afastado pelo novo
governo que se instalou.
Um problema imediato após a
Proclamação da República foi a ausência de um projeto social concreto, o que
fez com que este trabalho de articulação acabasse por ser atribuído aos
funcionários do antigo governo, que agiam dentro do novo governo com os mesmos
princípios do antigo, ou seja, com preceitos liberais.
A caracterização do povo
como bestializado, inerte, diante do novo panorama político que se formou com a
República foi alimentada por práticas como as estabelecidas pela Constituição
de 1891, que não tornava obrigado ao Estado dar educação ao povo, o que fez com
que ex-escravos e estrangeiros, por exemplo, permanecessem fora da comunidade
política, e esse quadro ilustra algumas razões pelas quais as classes populares
preferiam ainda a Monarquia à República.
O governo republicano,
objetivando sua estabilidade e tranquilidade para negociações com o exterior e
implementação do novo pacto de poder, procurou tirar os militares do jogo e
reduzir o nível de participação popular, além de trazer para seu lado as
oligarquias, o que lhes garantiria maior solidez política, enquanto colocava o
povo numa situação de inação política, que por conseguinte o separava ainda
mais dos seus ditos representantes, sob a justificativa de que este dificultava
a implementação da República, e tais práticas culminariam na instalação de
vícios políticos como relações baseadas em desejos pessoais que evoluíam para
práticas corruptas que acabavam por aumentar ainda mais o fosso político existente
entre os republicanos e o povo.
Os primeiros anos da República
foram marcados por grandes tensões que tomavam conta da capital, com riscos de
fragmentação política e com a crise do café, que ameaçava a economia e elevava
a dívida externa. Para conter essa instabilidade era preciso reduzir a
participação da capital, o que significaria primeiro, a retirada dos militares
do governo e, depois, a redução do nível de participação popular. Campos
Salles, e sua política de estados, conseguiu diminuir a participação da
capital, com medidas como a dissolução da Câmara de Vereadores, o Código de
Posturas e o autoritarismo ilustrado de Oswaldo Cruz e Pereira Passos, ao
torná-la indesejada e pouco atrativa; governo municipal e representação dos
cidadãos eram distantes e as atividades do povo permaneciam politicamente inexpressivas.
Foi criado pela República um novo Rio, domesticado e que buscava inspiração em
Paris, que adentrava a chamada “belle époque” com recursos disponíveis para as
reformas urbanas, graças às medidas econômicas de Campos Salles.
Mas se esse novo Rio,
inspirado por demais nos moldes europeus e, logo, insatisfatório à sua própria
realidade, só aumentava a divisão social; as obras incomodaram a população, culminando
na Revolta da Vacina, em 1904, e que contou com a participação de militares e
populares. Mas uma vez que os militares foram contidos, a revolta se mostrou
multifacetada, no sentido de que havia participação, não apenas do operariado,
como também das camadas populares que atuavam em contextos distintos. Segundo
José Murilo, apesar de discordâncias historiográficas sobre as razões para a
revolta, esta teria ocorrido essencialmente devido à obrigatoriedade da vacina
expressa em lei, já que antes as pessoas estavam se vacinando em número cada
vez maior. "A República se aplicara em importar a parafernália
institucional norte-americana. Havia uma constituição que garantia os direitos
civis e políticos dos cidadãos, havia eleições, havia um parlamento, havia
tentativas de formar partidos políticos. A mesa estava posta por que não
apareciam os convivas? Onde estavam eles?” A essa pergunta, José Murilo de
Carvalho apresenta como resposta a constatação de que o problema residia no
fato de termos importado um regime político estrangeiro que não considerava em
sua hierarquia a participação popular, mostrando-se insatisfatório na medida em
que cabia ao Estado decidir quem poderia ou não ser considerado cidadão. E o
quadro se revelava ainda mais preocupante quando se percebia que, somados todos
os excluídos politicamente, inclusos militares, analfabetos, mulheres entre
outros grupos, mais de oitenta por cento da população perderia sua cidadania.
Essa situação gerava, por parte dos que podiam votar, um desinteresse e um
afastamento da práxis política. "Os representantes do povo não
representavam ninguém, os representados não existiam, o ato de votar era uma
operação de capangagem", o que resultou na ausência de partidos políticos
legítimos.
Mas ao contrário do que se
pode pensar, havia participação política, e ela se dava quando o povo optava
por expressar seus descontentamentos com greves, promovendo quebra-quebra e
outras formas de manifestação que causavam tumulto na cidade, numa forma de
comportamento que não se adequava aos moldes desejados pelos reformadores da
elite. Esses moldes diziam respeito à ideia comum da figura do cidadão ativo,
consciente de seus direitos e deveres, capaz de organizar-se para agir em
defesa de seus interesses, pelo reformismo parlamentar ou pelo radicalismo da
ação econômica.
Nesse sentido, a Revolta da
Vacina não apresentava lideranças ou mesmo planejamento, pois coube aos
diversos pequenos grupos que se manifestavam por seus interesses, a condução
dos acontecidos, que mesmo não diretamente relacionados, representavam interesses
comuns entre os grupos. A revolta não ambicionava derrubar o governo
republicano, mas representava a insatisfação daqueles que se sentiram frustrados
em seu desejo por participação política e cidadania; a revolta deveria mostrar
ao Estado que o povo delimitava a autoridade do governo, atitude diante da qual
os republicanos reagiam com extremada violência. "Estava sendo violado um
direito que o sistema republicano deveria, por sua própria essência resguardar.
Ao não fazê-lo, ao violá-lo abertamente, o governo colocava-se contra seus
próprios princípios, colocava-se na ilegitimidade e ilegalidade, tornando então
justificável e justificado o recurso à força."
Uma vez distanciado da
política, o povo se organizava nos domínios da cultura, e foi através de
manifestações populares que o povo se manifestava. A política havia se mostrado
como uma mera abstração burocrática, não existia para ser respeitada, e a
figura do bestializado é, nesse contexto, representada pelo indivíduo que,
mesmo não representado, ou impedido de participar dessa forma política, ainda a
levava em consideração. O Estado não agia em prol da sociedade, e a única forma
de sobreviver a essa situação era aceitando-a desinteressadamente e expondo
suas incongruências ocasionalmente. O indivíduo que assim conseguisse agir era
denominado bilontra.
Enquanto o bestializado é o
indivíduo que aceita ser a massa de manobra, o cliente do coronel, o bilontra é
o indivíduo que percebe que a República “não é para valer”. Ele, sabendo disto,
não entra no jogo; supostamente o mais politizado, ele não participa do
processo, pois sabe que essa forma de política não é realizável. Para José
Murilo, o brasileiro é, historicamente, desinteressado por política. Por vezes
ele reproduz a memória propagada pelo Estado Novo de que a República Velha era
caótica e o Liberalismo tão incapaz que seria mais conveniente uma república
autoritária, posição que parece um tanto exagerada quando se volta o olhar ao
proveito tirado pelas elites da República Velha, por exemplo. A percepção que
fica é que, apesar da qualidade inegável de seu trabalho, José Murilo peca por
fazer algumas generalizações e suposições pouco rigorosas a respeito da
extensão do que ocorria no Rio de Janeiro, além de colocar o povo numa posição
demasiado apática.
Um pouco confuso em alguns momentos, sem conseguir deixar claro que argumentação queria desenvolver... Mas acho que pegou o espírito do livro, ao final.
ResponderExcluirNota: 8.0