segunda-feira, 16 de abril de 2012

RESENHA: Os Bestializados

Por Raphael França


Livro: Os Bestializados, O Rio de Janeiro de a República que não foi.

Autor: José Murilo de Carvalho

Editora / ano: Companhia das Letras / 2004

O livro de José Murilo de carvalho tem por objetivo traçar um mapa da participação popular na política nos anos iniciais da república brasileira e se, de fato, esta população poderia ser taxada de bestializada. É realizado um recorte da cidade do Rio de Janeiro, onde o exercício da cidadania será analisado pelo autor nos anos que marcam a consolidação do governo republicano. A escolha do Rio é obvia, levando-se em consideração que esta era a capital do império e epicentro das transformações políticas e sociais decorrentes da República.

Com a abolição da escravidão e o incentivo à imigração, a capital é atingida por um aumento demográfico que não podia suportar. Negros, agora homens livres, antes pertencentes ao meio rural, migram à cidade em busca de melhores oportunidades e juntamente com os estrangeiros aumentam consideravelmente o número de desempregados. Este aumento populacional traz consigo vários problemas: Aumento da criminalidade, escassez de habitações e surtos epidemiológicos, agravados pela péssima estrutura sanitária.

Em paralelo aos problemas sociais surgem os de ordem econômica. O capitalismo selvagem antes refreado pelo império se desenvolvia plenamente em uma economia imatura. Especulação cambial, emissão descontrolada de moeda sem lastro e inflação nas alturas, são alguns dos problemas que tomaram conta do país nos primeiros anos de república. Some-se a isto a queda no preço do café e teremos um período de recessão econômica.

Quanto à formação da mentalidade republicana, não se formou uma ideologia estritamente brasileira. O que aconteceu foi uma apropriação dos ideais republicanos, vigentes no mundo ocidental e que já algum tempo tomavam parte em um debate, intensificado no fim do século XVIII com a Revolução Francesa, um verdadeiro “maxixe”. Desta forma, o liberalismo e o positivismo que haviam parcialmente penetrado durante o império passam a circular livremente. O socialismo e o anarquismo importados da Europa somam-se aos demais projetos de república. Vale salientar que a absorção destas ideologias não era realizada em sua totalidade, seguindo fielmente as matrizes européias, mas de forma parcial e até mesmo mesclada, a fim de satisfazer a necessidade das classes que as utilizavam.

Deste embate ideológico saem os vencedores da primeira república. As oligarquias sob orientação liberal conseguem subjugar os positivistas de Benjamim Constant e os jacobinos que experimentaram o poder através de Floriano Peixoto. O povo, que havia se inebriado com a participação no governo de Floriano, tem limitada a sua cidadania. As elites agrárias dos estados são cooptadas para sustentar o governo central do Rio de Janeiro que estava ameaçado por revoltas promovidas pelos militares e massas operárias. Tendo em vista que o povo desorganizado e indisciplinado não daria sustentação a um governo que representaria as elites. Na esfera municipal, a lei previa eleição para intendentes, mas o cargo de prefeito era nomeado pelo presidente da República. O governo municipal era, assim, dissociado da representação dos cidadãos e se tornava um prolongamento do governo central.

Concebia-se uma distinção entre sociedade civil e política. Todo cidadão seria contemplado com os diretos civis, mas os diretos políticos só seriam acessados pelos capazes. Mulheres, índios, e analfabetos não se mostravam dignos de exercer seus diretos políticos. Aqui vale ressaltar que esta exclusão não ocorre apenas no Brasil, mas cópia de alguns dos modelos republicanos vigentes na Europa, a “civilização evoluída” a ser imitada. As reformas políticas para nada serviram além de consolidar o poder oficial nas mãos das elites, não contemplando a expansão da democracia. “A exclusão dos analfabetos pela constituição republicana era particularmente discriminatória, pois ao mesmo tempo se retirava a obrigação do governo de fornecer instrução primária”[i].

Com a profusão de ideologias existente nos primeiros anos da república não era de se esperar que vários conceitos de cidadania passassem a existir na mentalidade dos brasileiros e também as lutas por ampliação desta cidadania. A negação da cidadania plena gera inquietação em alguns setores da sociedade. Os militares e os operários do estado buscavam maior participação recorrendo ao pertencimento no corpo burocrático do estado. Não podendo ser considerada uma cidadania plena, este artifício é denominado por José Murilo de estadania e irá desempenhar um papel importante na busca destes funcionários públicos pela cidadania, em alguns momentos a sobrepujando. Os positivistas também surgem com um conceito de cidadania que só reconhece os direitos civis e sociais, pois não acreditavam no governo representativo, mas em um governo que concederia os direitos de forma paternalista, em outras palavras uma ditadura republicana. O setor operário que se organizara de forma a conquistar a cidadania através de lutas por maior representatividade e reformas sociais tem seus planos frustrados com a rigidez da república em permitir a ampliação da cidadania. Esta frustração será a porta de entrada para os ideais anarquistas de cidadania.

Os anarquistas pregam greves para abolir o estado como única alternativa para conseguir a ampliação da cidadania. Por sua vez estes anarquistas dividiam-se em duas vertentes: comunistas e individualistas, os primeiros pregavam o fim do estado através da organização sindical e eram contra a propriedade privada, enquanto que os individualistas eram contra qualquer forma de organização que não fosse espontânea e defendiam a propriedade privada.

A partir do ponto de vista de observadores estrangeiros e dos intelectuais da república que afirmavam não existir povo civilizado no Brasil, José Murilo afirma que estas pessoas tinham como cidadão ideal aquele encontrado na Europa. “Definitivamente, nem para os estrangeiros (que tinham em vista os modelos de seus países), nem para os republicanos radicais (que talvez acalentassem modelos ainda mais idealizados), a população do Rio passava no teste de cidadania”[ii]. Posteriormente o autor traçará um perfil da sociedade baseando-se nos censos. Na parte final do terceiro capítulo será constatado, através de análises quantitativas, que a primeira república foi eficiente em excluir as massas populares do processo eleitoral. A exclusão das mulheres, praças de pré, frades e analfabetos reduz o povo apto a votar a 20%. Poucos destes aptos ao voto concretizavam seu direito, tendo em vista que era perigoso exercer o direito ao voto no Brasil. As campanhas eleitorais eram influenciadas por grupos criminosos cooptados pelo sistema para que a elite se mantivesse no controle da política. Os capoeiras, como eram conhecidos estes marginais, coagiam os eleitores para favorecer o candidato para o qual trabalhavam. As fraudes eleitorais também eram ordinárias neste período, computavam-se mais votos que os números de eleitores, por exemplo. Para concluir o autor reconhece que do ponto de vista legal, realmente o Rio de Janeiro não tinha cidadãos ativos. O povo participava por fora dos canais oficiais.

A Revolta da Vacina é o ponto alto da análise de Carvalho. Com os avanços urbanos promovidos pelo governo da capital a fim de adequar o Rio aos padrões europeus, mais precisamente parisienses, ocorrem também reformas sanitárias visando sanar os surtos epidemiológicos que acometiam a capital. Neste contexto, Oswaldo Cruz irá iniciar uma campanha pela vacina obrigatória. Esta obrigatoriedade, juntamente com uma propaganda negativa por parte da oposição ao governo, irá desencadear a Revolta da Vacina.

É salientado pelo autor que as fontes para o historiador desejoso de estudar revoltas no Brasil são escassas, tendo em vista que boa parte dos envolvidos não é contabilizada pela burocracia de repressão do estado, ou seja, muitos participantes são presos e libertados sem processo judiciário ou sem que ao menos seja feito um registro de prisão. Com este problema em mente o autor iniciou sua pesquisa a partir dos jornais. O povo era pintado por estes jornais como manipulados ou como vagabundos. Os militares e civis que representavam o resíduo do jacobinismo florianista, pretendendo efetuar um golpe para assumir o poder e purificar a república, foram responsabilizados, de acordo com alguns jornais, por manipularem a massa popular. A segunda parte da revolta é deflagrada pelos operários. Analisando a participação operária na revolta, José Murilo nos mostra um histórico das lutas travadas pelos trabalhadores com o governo, como a organização de uma greve geral um ano antes. Também nos mostra a divisão entre os operários em Centro e Federação. O Centro era composto pelos operários do estado e tinham uma estreita ligação com os políticos militares jacobinos, participando da primeira fase da revolta. Enquanto que a Federação era composta por operários das empresas privadas e desejavam autonomia, sendo influenciados pelo anarquismo, participando da segunda fase da revolta.

Como podemos ver a Revolta da Vacina era composta por várias revoltas menores que confluíram para formá-la, esta fragmentação é reflexo das várias sociedades que formavam o Rio de Janeiro, cada qual com sua particularidade e bandeira de luta. Acontecem ao mesmo tempo revolta operária, militar e civil. Segundo o autor, o povo era acostumado a se rebelar, mas estas revoltas geralmente ocorriam por fins econômicos e não representavam oposição direta ao estado, a exemplo da Revolta do Vintém contra o aumento das passagens nos transportes públicos. O que determina a amplitude da Revolta da Vacina, para José Murilo de Carvalho, foi o cunho moralista resultante da obrigatoriedade da vacina e da invasão da privacidade do cidadão quando da entrada da equipe de vacinação na sua casa, ficando sozinhos com suas filhas e esposas. Assim como, por parte dos militares, a motivação era assumir o governo. Enquanto que os operários tentavam incluir suas lutas por melhores condições de trabalho na Revolta.

Aqui um comentário pessoal: Por falta de fontes ou por outros motivos, José Murilo de Carvalho efetua um disparo no escuro em creditar ao impacto moral, na população não vinculada aos militares e operários, a amplitude da Revolta da Vacina. Faltou ao autor um aprofundamento nas mentalidades das diversas repúblicas que constituíam o Rio de Janeiro da virada do século.

No ultimo capítulo será feita uma distinção entre bestializados e bilontras. O povo sabia que a República não era para valer, quem acreditava no teatro e se deixava ser manipulado era considerado bestializado, enquanto ciente que a república era mera encenação e ficava apenas a assistir era considerado bilontra.

Como compreender a participação popular na política, partindo do pressuposto de que existia uma sociedade homogenia no Rio de Janeiro? Impossível. Não foi levada em conta, por José Murilo de Carvalho, a diversidade social presente no Rio de Janeiro, apesar de ser uma das propostas do início do livro. De acordo com Ângela de Castro[iii], ainda se desconhece, por carência de pesquisas, uma rica movimentação de atores no âmbito da política, e que passou por fora da esfera eleitoral. As micro histórias podem revelar muito desta participação popular na política. Bestializados ou bilontras talvez sejam termos uma tanto degradantes para designar a população brasileira na virada para o século XX. Na verdade o termo que deveria ser utilizado pelo autor – e espero não desrespeitar um imortal – é o de silenciados, esperando que a historiografia lhes dê voz.



[i] Pg. 45

[ii] Pg. 74

[iii] GOMES, A. Castro & ABREU, Marta. A nova “velha” República: um pouco de história e historiografia.

Um comentário:

  1. Raphael, boa tentativa de comentário com o uso da Angela de Castro Gomes. O problema é que vc não demonstra ter feito uma boa leitura de José Murilo.
    Nota: 7.5

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