Historiador,
cientista político e sociólogo, ‘imortalizado’ pela Academia Brasileira de
Letras e Academia Brasileira de Ciências, José Murilo de Carvalho – e sua vasta
produção intelectual contando com 10 livros e mais de cem artigos publicados – dispensa
maiores apresentações. Suas pesquisas historiográficas se
concentram no período do Brasil Império – aqui se destacam as obras A construção da Ordem e O Teatro das Sombras – e da chamada
Primeira República – com ênfase, dentre outros, nos temas da história das
mentalidades, da cidadania e do republicanismo –, emergindo aqui, com grande
destaque, a obra que será analisada: Os
Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi.
Já
considerada um clássico da historiografia, a obra condensa resultados de
investigações do historiador sobre a participação política popular – sobretudo da
população fluminense, uma vez que o espaço de análise é a cidade do Rio de
Janeiro – nos primeiros anos da República – definindo-se aqui o recorte
temporal a ser analisado – e sugere uma explicação para o fenômeno. Em
contraponto ao que parecia apatia, alienação, “bestialização” (nas palavras de
Aristides Lobo) do ‘povo’, José Murilo traz a idéia de um sábio pragmatismo, ou
melhor, de uma esperta astúcia popular no que diz respeito aos assuntos
políticos. Com uma linguagem original e fluente, dialogando com as fontes, com
outras obras e outros historiadores – como de praxe na escrita historiográfica
–, percebe-se que o autor mira o tema da cidadania no contexto do início da
experiência republicana no Brasil. Este é o grande eixo do livro, que se
apresenta dividido em cinco capítulos, em meio aos quais são inseridas tabelas
estatísticas com dados censitários que fundamentam suas análises – como também
de praxe em obras de sociologia e ciência política.
No
primeiro capítulo – intitulado O Rio de Janeiro e a República – é traçado o panorama de intensas transformações de
caráter social, político, econômico e cultural que marcam a cidade do Rio de
Janeiro no conturbado período de transição do sistema político imperial para o
republicano e durante a primeira década da nascente República brasileira.
Dentre tais transformações o autor destaca inicialmente o crescimento
demográfico, associado ao êxodo rural, aumento da imigração que, aliado ao
contexto pós-abolição da escravidão, gera, dentre outros, problemas habitacionais
e de baixa remuneração (que por sua vez traz o problema da marginalidade). No
âmbito financeiro, o período seria marcado por uma febre especulativa na ânsia
por enriquecimento, pela constante emissão de moeda (pelo governo) e
instabilidade cambial – trazendo problemas inflacionários que viriam a refletir
num aumento do custo de vida não acompanhado por um aumento salarial,
resultando em forte instabilidade econômico-social. O movimento no campo das
mentalidades, outro elemento marcante no período, seria caracterizado pela importação
de ideologias estrangeiras – positivismo, anarquismo, liberalismo e socialismo
como principais influências na elaboração do discurso político-ideológico do
período. Também é apontado aquilo que o autor denomina ‘afrouxamento dos
costumes e da moral da população’, questão estimulada por fatores como o desequilíbrio
entre os sexos, os ‘nascimentos ilegítimos’ e a baixa taxa de ‘nupcialidade’. Mas
a idéia central do capítulo gira em torno da frustração na expectativa de ampliação
da participação política. Num cenário de tantas mudanças estruturais, as elites
usam da estratégia de redução desta participação política popular, que
resultaria numa frustração com o republicanismo e numa
tendência à carnavalização.
No
segundo capítulo – denominado República e
cidadanias – o autor aprofunda no cenário político-ideológico do período. A
importação das idéias européias, assim como sua sobreposição e aplicação ao
contexto nacional seriam características de um período de disseminação dos
valores burgueses no seio da sociedade fluminense. No que tange as mudanças
eleitorais, o autor, contrapondo a sociedade
civil – com direitos civis e de cidadania – à sociedade política – com direitos
civis e poder de voto –, traz a exigência de alfabetização – principal barreira
ao aumento da participação política – como estratégia de exclusão. No campo das
ideologias – marcado pela disseminação de idéias republicanas –, José Murilo
lembra a figura de Silva Jardim (‘ideólogo da República’) com sua concepção
positivista – fundamentada na idéia de uma ditadura republicana favorável à
integração. Nesse sentido, o autor concebe que a implantação do federalismo
(atacado por Silva Jardim) aliada ao fim do Poder Moderador, mesmo visando
certa democratização, teria corroborado para o fortalecimento das elites locais
e não para a ampliação da cidadania política. Acerca da influência do
ideário positivista, J. M. de Carvalho destaca sua disseminação entre os
insatisfeitos militares – interessados numa maior participação política –,
assim como no operariado estatal – interessado na garantia de direitos
trabalhistas – que, através do mecanismo denominado Estadania (defesa de
interesses sob amparo do Estado), defendiam a implantação de um Estado autoritário e paternalista. Em contraponto a
esta concepção, estaria o ideário socialista, de viés mais democrático –
bloqueado pela República oligárquica implantada. Outra concepção que se
disseminaria era a anarquista (dividida em socialista ou individual), que
pregava a luta contra o poder estatal.
No terceiro capítulo – Cidadãos
inativos: abstenção eleitoral – o historiador faz uma análise acerca da
concepção de alguns pensadores, contemporâneos do início da República
brasileira, de que não existiria um povo brasileiro no dito período. Mencionando,
por exemplo, o pensamento dos franceses Louis Couty e Blondel, J. M. Carvalho
identifica, por um lado, um preconceito e um exagero destes em relação à
sociedade brasileira – uma vez que para eles não havia povo político nem
cidadania no país –, por outro, como (sendo o Brasil importador de idéias) suas
idéias influenciavam também pensadores brasileiros, como Aristides Lobo (citado
na Introdução do livro), de quem o autor toma emprestado o termo que intitula
sua obra. Contrapondo-se a essa idéia de apatia popular, o autor menciona, por
exemplo, as greves operárias e as ‘arruaças’ que seriam, segundo J. M. de
Carvalho, indicativos da participação política do povo fluminense, mesmo que
fora dos meios oficiais. O capítulo é subdividido em dois tópicos. No primeiro
– intitulado O povo dos censos – o
autor insere tabelas estatísticas demonstrativas da ocupação da cidade
fluminense pela denominada população ativa no período, apontando a grande
maioria como pertencente à chamada classe operária. No segundo tópico –
intitulado O povo político – o autor analisa
a exclusão das chamadas massas do direito ao voto, detectando – além da
política de exclusão – um fenômeno de abstenção eleitoral pelos que
contemplavam do direito ao voto. Segundo J. M. de Carvalho, o processo, além da
mínima participação, era completamente deturpado, alvo de constantes fraudes.
O quarto capítulo – denominado Cidadãos ativos: a revolta da vacina – é ao mesmo tempo uma espécie
de contraposição e crítica do autor em relação ao tema da apatia versus participação política (cidadania)
do ‘povo’. Após apresentação do contexto de transição do governo de Campos
Sales para o de Rodrigues Alves – este último marcado por reformas estruturais,
sobretudo de caráter sanitário e urbanístico, na cidade fluminense, com
destaque para a atuação do engenheiro Pereira Passos e do médico Oswaldo Cruz –
o capítulo é subdividido em três tópicos para tratar em específico da Revolta
da Vacina, seus participantes e suas causas. No primeiro tópico – A revolta – J. M. de Carvalho apresenta
os desdobramentos do movimento no meio político (os embates no congresso) e na
imprensa (as campanhas contra a obrigatoriedade), a rápida generalização da
reação popular contra a aprovação da obrigatoriedade da vacina e a repressão do
Estado contra os que se rebelavam. Sobre a identidade destes é que versará o
segundo tópico – Os revoltosos. Aqui,
após apresentar duas visões gerais no período (a dos simpatizantes do movimento
e a dos que apoiavam o governo), o autor destaca a heterogeneidade dos
participantes – dentre os quais emergem inicialmente como principais a oposição
do governo e os operários, posteriormente os militares e ainda e os pobres – e
as dificuldades em identificá-los. Sobre as causas do movimento revoltoso o
autor tratará no terceiro e último tópico do capítulo, denominado Os Motivos. Na sua visão, a principal
causa – o ‘cimento’ da Revolta – era a indignação moral do povo. Mas
independentemente das motivações, o que prevalece na tese do autor é a idéia de
que os cidadãos não são tão apáticos ou inativos – como se dizia – na luta
pelos seus direitos civis.
No quinto e último capítulo da obra – Bestializados ou bilontras? – o autor ressalta
como característica do Rio de Janeiro a atitude pragmática, cínica,
carnavalizada, perante o poder. Este será elemento norteador para sua tese
final. O que parecia apatia, alienação, “bestialização”, seria, na verdade,
pragmatismo, sabedoria, astúcia. Para J. M. de
Carvalho, se tratando de política, o povo sabia que o formal não era sério,
sabia que a República não era pra valer. Nesse sentido, o bestializado
era quem levasse a política a sério, quem se prestasse a manobras de
manipulação. Nessa perspectiva, quem apenas assistia – como fazia o povo do Rio
de Janeiro em meio tantas transformações – não seria ‘bestializado’, mas ‘bilontra’.
Camarada politicamente mais esperto e omisso por opção, este é bilontra de J.
M. de Carvalho, aquele que sabia que a República era uma farsa, uma vez que os
direitos do cidadão não existiam de fato e que o jogo político estava imerso em
corrupção.
Como toda grande obra, Os
Bestializado, de José Murilo de Carvalho, arranca tanto críticas quanto
elogios no debate historiográfico. Dentre as principais críticas, uma parece
bastante cabível e diz respeito à idéia um tanto perversa do autor de que os
brasileiros não levam política a sério. Isto, além de trazer a idéia de que
participar da política é algo desestimulante, desinteressante, corrobora para
que a elite faça uso de tal conivência. De fato, a idéia de que votar é coisa
de bestializado, tem que ser revista. Outra crítica aponta a interpretação do
autor acerca daquele determinado período da história do Brasil como estando
atrelada à idéia lançada pelo Estado Novo, de que a então denominada “República
Velha” era uma verdadeira bagunça, um caos político, o que também merece ser
revisto no sentido de perceber a República naquele tempo como objeto de
intensas disputas. Por outro lado, percebe-se como o autor
tenta dar espaço a uma história dos excluídos, mesmo que marcado por certa “distorção
elitista” (para fazer uso do mesmo termo que o próprio José Murilo usa para
descrever Aristides Lobo), observando o povo sem estar no meio do povo. Por
fim, cabe salientar que a heterogênea formação acadêmica do autor atua
inserindo marcas de originalidade na sua escrita, fazendo de Os Bestializados um misto de história social, antropologia
urbana, crítica cultural e análise política – campos que o autor atravessa com
brilho para apresentar, numa linguagem fluida e acessível, os impasses, o
imaginário social, o cotidiano político na capital e, sobretudo, sua concepção
acerca da idéia de cidadania na nascente República. Um clássico que merece ser
lido e relido por todos aqueles que buscam uma análise acerca da cultura
política nacional, especificamente no contexto da cidade do Rio de Janeiro no
período da chamada Primeira República.
Bom trabalho! Nota: 9.0
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