domingo, 15 de abril de 2012

A Participação do Povo Fluminense nos Primeiros Anos da República *

Isabela Dias

A obra de José Murilo de Carvalho pretende fazer uma explanação analítica acerca do contexto político dos primeiros anos da República Brasileira tendo em vista a participação popular, pois a referida forma de governo tem como tese principal o direito de cidadania, entretanto no decorrer da obra percebemos que o autor aponta para a não efetivação da proposta republicana. Esta tese também foi discutida pelo autor na sua obra “A Formação das Almas” onde sugere que a república pensada não foi à mesma que a praticada. Contudo, a principal preocupação de José Murilo em “Os Bestializados” é discutir a participação do povo na política das primeiras décadas da República, tendo como palco principal a cidade do Rio de Janeiro. O autor aponta para uma intensa participação popular em organizações de assistência mútua e festas como a da Penha em detrimento da participação na política formal, em especial as eleições. O autor assinala que existia uma carnavalização do povo frente à política reflexo de sua consciência que a República não era pra valer.

José Murilo de Carvalho inicia sua obra apresentando a cidade do Rio de Janeiro em seus aspectos políticos, sociais e culturais, aspectos esses que sofreram transformações advindas com as transformações políticas no final do século XIX. Além disso, ele nos fala das várias concepções de cidadania, as quais não eram convergentes entre si, que se desenvolveram durante os primeiros anos da república. Esta variedade esteve alicerçada no que o autor aponta no primeiro capítulo da obra, a mudança nas mentalidades e ideias as quais estavam vinculadas as européias, ocorrendo, assim, uma mistura de ideias contrastantes como as liberais, positivistas, socialistas e anarquistas.

Para José Murilo, os intelectuais brasileiros não criaram uma ideia embasada na realidade que estavam inseridos, mas tiveram a necessidade de se prenderem a modelos que estavam de acordo com a realidade européia. Ele nos fala que as classes agarravam as propostas de acordo com suas aspirações. Contudo, percebemos no decorrer da obra que as propostas de cidadanias não eram acompanhas pelas práticas concretas de participação popular nas decisões públicas. Diante disso, o autor aponta para a afirmação de Aristides lobo e L. Couty, que no Brasil não existe povo. Entretanto, é importante termos em vista o que era povo para estes pensadores. Como já foi frisado, os intelectuais sejam eles europeus ou brasileiros comparavam o Brasil a Europa, desta forma, eles concebiam o povo nos moldes europeus sem perceberem as especificidades da realidade brasileira. O povo era negado pelo Estado, pois o excluía do voto. Para se ter o direito de votar era exigido a alfabetização, realidade da minoria da população. Desta maneira José Murilo indica a existência de um pacto entre a população e o Estado, quando este não cumpria o pacto e queria pelo poder impor o formal à população reagia em forma de revoltas como ocorreu na Revolta da Vacina.

O historiador em apreço nos capítulos II e IV dedica-se a análise dos cidadãos inativos e ativos, intitulados respectivamente de “Cidadãos inativos: a abstenção eleitoral” e “Cidadãos ativos: a Revolta da Vacina”. No primeiro o autor, mostra que para os europeus havia, assim como para alguns brasileiros, Aristides lobo e Raul Pompéia, uma ausência do povo na política brasileira, sendo a classe dominante aquela que decidia os rumos políticos do país. Contudo, José Murilo volta o seu olhar para questionar estes intelectuais e frisa se esta inexistência do povo não estaria vinculada ao tipo de povo que eles pensavam no caso o povo europeu. J. M. de Carvalho ressalta “a afirmação de inexistência de povo político, de apatia total da população era claramente exagerada”1 visto que a história do Rio de Janeiro está embebecida de participação popular em acontecimentos políticos desde o Primeiro Reinado, ele aponta especialmente para a Revolta do Vintém em 1880 e para as manifestações ocorridas logo após a proclamação materializadas em greves operárias, passeatas e quebra-quebras. Entretanto, esta inativação estava intimamente ligada à questão eleitoral, o povo foi excluído do direito de votar e a capital do Brasil apresentava os índices mais elevados de não participação eleitoral. O autor aponta várias questões para esta inativação, a primeira já citada era a questão do critério de alfabetização, outra seria o perigo traduzida na contratação de capoeiras para a garantia dos candidatos, portanto, do ponto de vista formal , o Rio de Janeiro não tinha povo.

Entretanto, como é posto por José Murilo, os cidadãos inativos defendiam os seus direitos como ocorreu durante a Revolta da Vacina a qual seria o ponto culminante de participação popular no Rio de Janeiro. O autor faz uma análise da revolta no capítulo intitulado “Cidadãos ativos: a Revolta da Vacina” ele apresenta esta revolta como inicialmente elaborada pela oposição elitista que questionava a obrigatoriedade da vacina, pois esta imposição iria de encontro ao princípio da liberdade. Já o povo se alicerçava nos valores tradicionais. É posto pelo pesquisador que sua tese central para a mobilização popular da Revolta da Vacina está apenas na justificação moral. Aqui, creio que o autor se valeu de uma visão limitada, pois neste mesmo capítulo ele aponta para várias questões sociais e políticas que perpassavam a sociedade da época como o projeto de urbanização da cidade do Rio de Janeiro empreendido pelo governo de Rodrigues Alves com o apoio do então prefeito Pereira Passos o qual visava a construção de avenidas, saneamento e embelezamento da cidade. Para tanto, ocorreram desapropriações desordenadas, as habitações populares foram postas abaixo para a efetivação do projeto, diante disso, os pobres foram expulsos para os morros e áreas periféricas da cidade. Portanto, creio que a questão da obrigatoriedade da vacina foi o ápice para a eclosão da movimentação popular na Revolta da Vacina, pois o povo já se encontrava insatisfeito com o governo por outras questões que já foram apontadas. Portanto, podemos dizer que a revolta popular foi uma mescla de questões ditas tradicionais e questões sociais que permeavam as classes desfavorecidas da época.

José Murilo de Carvalho encerra sua obra com o capítulo “Bestializados ou Bilontras”, aqui o historiador busca mediante a tradição ibérica e as especificidades sociais do Rio de Janeiro mostrar que a população fluminense não era bestializada como Aristides lobo acreditava, mas era um povo caracterizado essencialmente como bilontra. A carnavalização do poder, a apatia política, alienação ou bestialização era identificada por José Murilo como pragmatismo, sabedoria, astúcia, visto que o povo tinha a consciência de que a república não era pra valer, ou seja, que a essência republicana, participação popular, não existia no Brasil no que tange a formalidade. Aquele que levasse a república a sério, este sim seria o bestializado, pois se prestava a manipulação. Contudo, ele aponta uma alternativa que a cidade deveria redefinir a república segundo a participação que lhe é própria, gerando, assim um novo cidadão aproximado do citadino.

Diante desta breve explanação da obra com algumas observações, pode-se dizer que a obra de José Murilo de Carvalho é relevante para a história e historiografia referente aos primeiros anos republicanos do Brasil na cidade do Rio de Janeiro, bem como de proeminência no que tange aos vários conceitos de cidadania e participação popular durante a referida época e local. Também é interessante a análise do historiador ao verificar uma tradição da cultura ibérica vinda com a colonização na política brasileira, neste ponto, creio que podemos fazer uma ponte com o pensamento de Sérgio Buarque de Holanda em seu livro Raízes do Brasil o qual trata desta tradição ibérica persistente na cultura política brasileira, cultura ibérica que se traduz no personalismo e se reflete na frouxidão da estrutura social do Brasil.

José Murilo compara também a tradição da família, do clã, e a falta de solidariedade mais ampla, de consciência coletiva entre a cultura ibérica e o Brasil, aqui também o autor de Os Bestializados está em consonância com Sérgio Buarque de Holanda. Isto se reflete segundo José Murilo de Carvalho em grupos comunitários de auxílio mútuo, fragmentando a unidade da população fluminense, “sua sociabilidade e extroversão davam-se nas relações pessoais e nos pequenos grupos”. 2 E ainda “ o Brasil junto com outros povos ibéricos, caracterizava-se pela sociabilidade, pela predominância dos aspectos morais, afetivos, integrativos, colaborativos”.3 Ou seja, percebemos entre esses dois importantes pensadores a defesa de que na cultura política brasileira há a persistência de um fraco associativismo, fruto dessa tradição ibérica no Brasil, resultando, assim, na prevalência dos interesses coorporativos. Contudo, não podemos perder de vista que em Os Bestializados a proposta central do autor é discutir a participação ou não-participação do povo na política brasileira, a questão do associativismo é uma subtese utilizada por Murilo de Carvalho para explicar o fracasso das manifestações populares na política brasileira, em particular a do Rio de Janeiro nos primeiros anos da República.

* Resenha do livro Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3ª edição. São Paulo. Companhia das Letras: 2004.

NOTAS:

1. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3ª edição. São Paulo. Companhia das Letras: 2004. Pág. 70.

2. Idem. Pág.150.

3. Idem. Pág.151.

.

BIBLIOGRAFIA

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3ª edição. São Paulo. Companhia das Letras.

___________ O Povo do Rio de Janeiro: Bestializados ou Bilontras? Revista Rio de Janeiro, n.3, maio/ago. de 1986, p.5-15.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das

Letras, 1995.

Um comentário: