segunda-feira, 16 de abril de 2012

Resenha do livro: Os Bestializados



Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi José Murilo de Carvalho

Cintia Marques


José Murilo de Carvalho inicia a obra, “Os bestializados”, fazendo uso da célebre frase de Louis Couty de que “o Brasil não tinha povo”. A frase traduz todo o desapontamento daqueles que perceberam o desinteresse do povo brasileiro em relação aos acontecimentos políticos, especialmente a proclamação da República, assistindo a transformação política bestializados, acreditando se tratar de uma parada militar que, assim como outras festas, ocupava, frequentemente, o espaço público.
Interessa-nos a questão do posicionamento popular em relação às praticas políticas e à concepção utilizada por contemporâneos, como Louis Couty e Aristides Lobo, que desqualificaram a população brasileira adotando como referencial os acontecimentos políticos e sociais externos, sobretudo a Revolução Francesa.
É inegável a diminuta participação popular nas mudanças que marcaram o cenário político da República, o que engendrou uma situação paradoxal, haja vista a concepção de republicanos radicais, como Silva Jardim, que concebiam o novo regime como a irrupção do povo na política. Não podemos, também, desconsiderar que o novo sistema político foi fruto da articulação de uma minoria elitista, a qual visava a manutenção dos seus privilégios, às expensas da vontade popular.
A República criou expectativas de maior participação e de redefinição de papeis na sociedade entre alguns grupos, sobretudo em meio ao nascente movimento operário e entre os intelectuais, porém as atitudes autoritárias dos primeiros governantes frustraram todas as aspirações. Os intelectuais desistiram da política e se voltaram para a literatura, enquanto os operários organizaram-se para fazer frente ao governo, usando como arma de combate alguns pasquins que circulava na época.
A população foi dividida entre os cidadãos ativos e inativos, ou seja, entre os que tinham direitos plenos – políticos, sociais e civis – e aquele que só possuíam os direitos civis da cidadania. Uma das críticas mais ferrenhas de Carvalho (2009) em relação à República é que está não trouxe mudanças sociopolíticas significativas, pelo contrário, em alguns casos representou um retrocesso. Se analisarmos as Constituições de 1824 e a que foi elaborada no início da República, em 1891, não é difícil apreender que esta buscava restringir a participação popular nas decisões políticas.
Para Carvalho (2009), a inovação da Constituição republicana foi eliminar as exigências de renda e manter apenas a da alfabetização, o que eliminou cerca de 85% da população, “entre eles podemos incluir os proprietários rurais. Nas cidades, muitos votantes eram funcionários públicos controlados pelo governo.” O voto, ligado aos lutas pelo poder político local, que deveria ser um direito do cidadão, tornou-se um ato de obediência forçada, uma troca de favores entre dominantes e dominados.
As eleições eram marcadas por lutas entre chefes políticos locais que usavam da violência para elegerem seus candidatos. Nas eleições havia diversos personagens, como o capanga, o fósforo e o cabalista, que garantia a vitória do chefe político mais influente, por isso, além de ser inútil votar, ainda era um risco de vida, inibindo os interesse dos cidadãos de se aventurarem a exercerem os seus direitos. O exercício da cidadania política tornou-se caricatural. O cidadão republicano era o marginal mancomunado com os políticos que vendia seu voto a quem lhe oferecesse mais vantagens.
Entretanto, Carvalho (1987) acerta que, apesar da notória exclusão do povo nos processos políticos, seria errôneo entender essa relação entre Estado e sociedade de forma maniqueísta, ou seja, vitimando o povo e transformando o Estado em seu algoz. O autor busca entender qual era o perfil de povo e de nação, que se tinha nesse momento da história, e como era concebia a cidadania.
Nesse viés, havia uma incidência no meio intelectual em admitir a inexistência de povo ou de cidadãos. Raul Pompéia afirma que “quem observar o Brasil diria que ele está morto, pois, o espírito público do Rio de Janeiro é ausente”. Carvalho acredita que antes de estereotipar a população como desinteressada, apática ao seu destino político, deve-se compreender que tipo de povo se buscava?
Entender a população como completamente alheia aos acontecimentos políticos seria exagerado, posto que logo após a proclamação da República o Rio de Janeiro foi palco de varias agitações e greves operárias, passeatas e quebra-quebra, afastando a visão de um povo politicamente passivo. Sendo assim, de uma situação de apatia, de inexistência de manifestação popular, passou-se rapidamente para outra: o excesso de povo que ocupava o espaço público reivindicando melhorias de condições de existência, de moradia, de trabalho, etc. O grande problema é que, na visão dos governantes da época, essa “massa arruaceira” não era de cidadãos, era “a canalha”, “a escória”, era o mestiço, o estrangeiro, o egresso da escravidão, ou seja, todos aqueles que deveriam ser afastados do cenário político e jogados à margem da sociedade civil. Com tudo isso, é impossível negar a presença de um povo, a questão é que esse povo estava do outro lado do regime. 
A cidade do Rio de Janeiro era o cerne do poder republicano e o comportamento da sua população refletiu em todo o país. As primeiras décadas republicanas têm como apanágio uma desorganização generalizada. A República, de acordo com o autor, trouxe à baila alterações de natureza demográfica provenientes da abolição da escravatura e da grande incidência de imigrações que resultaram num desequilíbrio entre os sexos, haja que o número de homens – que se aventuraram na capital em busca de melhores condições existenciais – excedia o de mulheres. Esse excesso populacional engendrou sérios problemas habitacionais, de higiene e de segurança pública, posto que o vasto número de indivíduos, especialmente os egressos da escravidão, vieram dá corpo a dita classe perigosa de malandros, ladrões, prostitutas, entre outros, situados na linha tênue da (i) legalidade. 
A cidade, paulatinamente, tornou-se um lugar perigoso para morar devido não só ao aumento dos índices de criminalidade, mas também aos problemas de higiene configuradas nas vastas incidências epidêmicas que ceifaram, a cada verão, um número significativo de pessoas que se amontoavam nas casas de cômodos ou cortiços, desprovidos de saneamento, de abastecimento de água e repletos de miasmas que continham os principais agentes da varíola, malária, tuberculose e de tantas outras doenças que assolaram as cidades brasileiras da época. 
A República criou um clima de imoralidade justificada, por Carvalho, pelos altos índices de nascimentos ilegítimos acrescido da baixa dos índices de nupcialidades, “o pecado popularizou-se, personificou-se.” Houve também uma mudança nos sentimentos e atitudes da população carioca, ocasionando a quebra dos valores antigos de moral e honestidade. Carvalho (1987) advoga que a “saída da figura austera e patriarcal do imperador” fomentou uma sensação de maior liberdade, sendo assim, “o que antes era feito com descrição [...] para fugir da vigilância dos olhos imperiais, agora podia ser gritado das janelas”. Nessa perspectiva, o novo regime estimou os jogos de enriquecimento rápido, como o do Bicho, de corrida, cassino e as jogatinas da bolsa, estimuladas pela política do Encilhamento que “trouxe a febre de enriquecimento a todo custo”. 
Essa população de “costumes mais soltos” avultava as preocupações das autoridades que temiam as aglomerações festivas que ocupavam determinadas ruas da cidade em momentos de festividades. A primeira anomalia social, apontada por Carvalho (1987), foram os festejos em homenagem à abolição da escravidão que se perpetuaram durante década na capital. Esses eram dias de intensa prevenção republicana contra pobres e negros no intuito de congraçar a capital, evitando arruaças e possíveis distúrbios sociais gerados, sobretudo, por egressos da escravidão que manifestavam uma reação negativa à República.
Uma das criticas do historiador é em relação à ineficácia dos representantes republicanos de angariar a simpatia da população pobre ao novo regime político, especialmente os negros que concebia o Imperador, e sua filha, como o “patrono da abolição”. Nesse período, havia uma evidente disparidade entre as camadas menos favorecidas economicamente e a República que deveria organizar outro pacto de poder que estabilizasse a capital.
O Estado, para a grande maioria, era algo que se recorria, mas que deveria se manter externo ao cidadão. Não se excluía a necessidade do Estado, contudo foi estabelecido uma noção de limites do papel deste. Essa concepção, de acordo com Carvalho (1987), foi o motor da Revolta da Vacina que revelou antes convicções sobre o que o Estado não podia fazer do que sobre as suas obrigações. Para Carvalho (1987), a Revolta não negou o estado nem reivindicou a participação popular nas decisões do governo; ela apenas buscou defender valores e direitos considerados acima da esfera de intervenção do Estado.
Tal Revolta evidenciou o fracasso da República na definição do relacionamento entre o Estado e o povo e nas tentativas de mobilizar as massas dentro dos padrões liberais. Por longas décadas, Estado e povo posicionaram-se em lados opostos, travando lutas oriundas de representações diferentes de cidadania. Enquanto o Estado usava a força das armas para combater a “escoria social”, o povo valia-se de atitudes de completo desrespeito pela lei, carnavalizando seu relacionamento com o governo mediante manifestações populares, especialmente durante o carnaval, ou, para os mais intelectualizados, fazendo uso da impressa, do teatro, etc.
Isto posto, é inegável a visão gradativa usada pelo autor para se referir ao povo ao longo da obra. A priori, havia o suposto bestializado que viu um marco histórico da política nacional sem nem atentar para o que estava acontecendo; segundo temos o povo apático, aquele que adquiriu conhecimento das mudanças políticas, mas não se interessou pela sua cidadania inativa e manteve distancia do Estado; logo após temos o povo que ocupa o espaço público para reivindicar os seus direitos, tendo como ápice a Revolta da Vacina; e por fim, surge o cidadão malandro, o bilontra que carnavaliza as questões sociais e que tenta tirar o máximo de proveito de seu relacionamento com o Estado.
Carvalho (1987) termina a obra com a seguinte frase: o povo brasileiro estava longe de ser bestializado. Era bilontra. Daí surge a seguinte questão: o povo realmente não assistiu a tudo bestializado? E até que ponto esse cidadão, por vezes, malandro, gozador era o bilontra na sua relação com o Estado?
Se analisarmos os principais acontecimentos políticos que resultaram nas mudanças de governo facilmente encontraremos resposta para a primeira questão. O povo sempre foi excluído dos processos políticos, no Império a Independência do Brasil, de acordo com Carvalho (2009, p. 26), foi uma “negociação entre a elite nacional, a coroa portuguesa e a Inglaterra, tendo como figura mediadora foi o príncipe D. Pedro”. Nesse processo, o povo a “presença do povo não foi decisiva”, pelo contrário, em algumas “capitanias mais distantes, a notícia da independência só chegou uns três meses depois”.
A Independência foi uma mudança dentro da ordem, pois não mudou a condição de vida da população, não aboliu os escravos, não ampliou os direitos políticos e nem garantiu os direitos civis e sociais da maioria. Apenas trouxe o critério de renda para a eleição, garantindo os privilégios dos grandes proprietários rurais que apoiaram o golpe dado por D. Pedro I. O povo nesse processo? Nada soube, nada fez! Até porque as mudanças políticas não interferiam diretamente em seu cotidiano; as massas continuaram a manter sua rotina em busca da sobrevivência, total ou parcialmente alheia aos acontecimentos políticos.
A República também não trouxe mudanças na vida da população. Esta não participou ativamente no nascimento do novo regime. Sendo assim, não podemos deixar de concordar, em parte, com as impressões dos contemporâneos da proclamação em relação ao posicionamento do povo diante da República.
O povo assistiu a tudo bestializado, mas não permaneceu nesse estado, especialmente após perceber as vantagens que as mudanças sociais e econômicas, fermentadas pelo novo regime, fizeram aflorar. Como advogou Carvalho, o povo buscou desvincular-se dos padrões de moralidade, forjadas pelo Império, criando meios de se beneficiar do caos econômico, oriundo da mal fadada política do Encilhamento. Mas é evidente, na leitura de Carvalho, que esse mesmo povo buscou angariar benefícios, especialmente o enriquecimento rápido, contudo não aspirou participar das decisões políticas, pelo contrário, até mesmo os poucos que adquiriram o privilégio de votar evitaram exercer o voto com medo de represálias.
Se preocupar com o carnaval, com a organização da festa da Penha, mais do que com desenvolvimento político e as manobras que são utilizadas pelo o Estado para manter o povo distante das decisões políticas; questionar apenas aquilo que o Estado não deveria fazer seria mais eficaz do que exigir aquilo que o Estado deveria fazer, como ampliar o direito político, sociais e econômicos, não seria uma maneira de se bestializar? De ser estúpido? Alienado?
É esse povo que carnavaliza os acontecimentos políticos, que satiriza as manobras do Estado, achando graça naquilo que deveria ser um fermento para buscar mudanças sociais e políticas significativas, são os bilontras da história? Ou é o Estado, que com sua política do pão e circo, canalizava a atenção das massas para questões banais enquanto regiam as suas vidas de acordo com os interesses de uma seleta minoria?
Seria ingenuidade acreditar que o povo não assistiu aos acontecimentos políticos republicano bestializados, da mesma maneira que seria um equivoco acreditar que esse mesmo povo continuo bestializado por muito tempo. O grande problema de Carvalho é não levar em consideração as categorias sociais que estavam inseridas dentro da sua concepção de povo. De que povo estamos falando? Os intelectuais que tiveram contato com os ideais europeus de igualdade e fraternidade ou aquele “pobre mestiço”, na maioria das vezes, egresso da escravidão que vivia em condições de subsistência? É difícil acreditar que essa segunda categoria, sem o mínimo de educação formal e lutando constantemente contra as injustiças sociais, não tenha assistido a tudo bestializado.  Carvalho não especifica e acaba por cair nas armadilhas de um dos vícios historiográficos: a generalização.


Bibliografia consultada
CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
_____________________. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 12ª Ed. Rio de Janeiro, 2009. 



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