Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi José Murilo de Carvalho
Cintia Marques
José Murilo de Carvalho inicia a obra, “Os bestializados”, fazendo uso da
célebre frase de Louis Couty de que “o Brasil não tinha povo”. A frase traduz
todo o desapontamento daqueles que perceberam o desinteresse do povo brasileiro
em relação aos acontecimentos políticos, especialmente a proclamação da
República, assistindo a transformação política bestializados, acreditando se
tratar de uma parada militar que, assim como outras festas, ocupava,
frequentemente, o espaço público.
Interessa-nos a questão do posicionamento popular em relação às praticas
políticas e à concepção utilizada por contemporâneos, como Louis Couty e
Aristides Lobo, que desqualificaram a população brasileira adotando como
referencial os acontecimentos políticos e sociais externos, sobretudo a
Revolução Francesa.
É inegável a diminuta participação popular nas mudanças que marcaram o
cenário político da República, o que engendrou uma situação paradoxal, haja
vista a concepção de republicanos radicais, como Silva Jardim, que concebiam o
novo regime como a irrupção do povo na política. Não podemos, também,
desconsiderar que o novo sistema político foi fruto da articulação de uma
minoria elitista, a qual visava a manutenção dos seus privilégios, às expensas
da vontade popular.
A República criou expectativas de maior participação e de redefinição de
papeis na sociedade entre alguns grupos, sobretudo em meio ao nascente
movimento operário e entre os intelectuais, porém as atitudes autoritárias dos
primeiros governantes frustraram todas as aspirações. Os intelectuais
desistiram da política e se voltaram para a literatura, enquanto os operários
organizaram-se para fazer frente ao governo, usando como arma de combate alguns
pasquins que circulava na época.
A população foi dividida entre os cidadãos ativos e inativos, ou seja,
entre os que tinham direitos plenos – políticos, sociais e civis – e aquele que
só possuíam os direitos civis da cidadania. Uma das críticas mais ferrenhas de
Carvalho (2009) em relação à República é que está não trouxe mudanças
sociopolíticas significativas, pelo contrário, em alguns casos representou um
retrocesso. Se analisarmos as Constituições de 1824 e a que foi elaborada no
início da República, em 1891, não é difícil apreender que esta buscava
restringir a participação popular nas decisões políticas.
Para Carvalho (2009), a inovação da Constituição republicana foi eliminar
as exigências de renda e manter apenas a da alfabetização, o que eliminou cerca
de 85% da população, “entre eles podemos incluir os proprietários rurais. Nas
cidades, muitos votantes eram funcionários públicos controlados pelo governo.”
O voto, ligado aos lutas pelo poder político local, que deveria ser um direito
do cidadão, tornou-se um ato de obediência forçada, uma troca de favores entre
dominantes e dominados.
As eleições eram marcadas por lutas entre chefes políticos locais que
usavam da violência para elegerem seus candidatos. Nas eleições havia diversos
personagens, como o capanga, o fósforo e o cabalista, que garantia a vitória do
chefe político mais influente, por isso, além de ser inútil votar, ainda era um
risco de vida, inibindo os interesse dos cidadãos de se aventurarem a exercerem
os seus direitos. O exercício da cidadania política tornou-se caricatural. O
cidadão republicano era o marginal mancomunado com os políticos que vendia seu
voto a quem lhe oferecesse mais vantagens.
Entretanto, Carvalho (1987) acerta que, apesar da notória exclusão do
povo nos processos políticos, seria errôneo entender essa relação entre Estado
e sociedade de forma maniqueísta, ou seja, vitimando o povo e transformando o
Estado em seu algoz. O autor busca entender qual era o perfil de povo e de
nação, que se tinha nesse momento da história, e como era concebia a cidadania.
Nesse viés, havia uma incidência no meio intelectual em admitir a
inexistência de povo ou de cidadãos. Raul Pompéia afirma que “quem observar o
Brasil diria que ele está morto, pois, o espírito público do Rio de Janeiro é
ausente”. Carvalho acredita que antes de estereotipar a população como
desinteressada, apática ao seu destino político, deve-se compreender que tipo
de povo se buscava?
Entender a população como completamente alheia aos acontecimentos
políticos seria exagerado, posto que logo após a proclamação da República o Rio
de Janeiro foi palco de varias agitações e greves operárias, passeatas e
quebra-quebra, afastando a visão de um povo politicamente passivo. Sendo assim,
de uma situação de apatia, de inexistência de manifestação popular, passou-se
rapidamente para outra: o excesso de povo que ocupava o espaço público
reivindicando melhorias de condições de existência, de moradia, de trabalho,
etc. O grande problema é que, na visão dos governantes da época, essa “massa
arruaceira” não era de cidadãos, era “a canalha”, “a escória”, era o mestiço, o
estrangeiro, o egresso da escravidão, ou seja, todos aqueles que deveriam ser
afastados do cenário político e jogados à margem da sociedade civil. Com tudo
isso, é impossível negar a presença de um povo, a questão é que esse povo
estava do outro lado do regime.
A cidade do Rio de Janeiro era o cerne do poder republicano e o
comportamento da sua população refletiu em todo o país. As primeiras décadas
republicanas têm como apanágio uma desorganização generalizada. A República, de
acordo com o autor, trouxe à baila alterações de natureza demográfica
provenientes da abolição da escravatura e da grande incidência de imigrações que
resultaram num desequilíbrio entre os sexos, haja que o número de homens – que
se aventuraram na capital em busca de melhores condições existenciais – excedia
o de mulheres. Esse excesso populacional engendrou sérios problemas habitacionais,
de higiene e de segurança pública, posto que o vasto número de indivíduos,
especialmente os egressos da escravidão, vieram dá corpo a dita classe perigosa
de malandros, ladrões, prostitutas, entre outros, situados na linha tênue da (i)
legalidade.
A cidade, paulatinamente, tornou-se um lugar perigoso para morar devido
não só ao aumento dos índices de criminalidade, mas também aos problemas de
higiene configuradas nas vastas incidências epidêmicas que ceifaram, a cada
verão, um número significativo de pessoas que se amontoavam nas casas de
cômodos ou cortiços, desprovidos de saneamento, de abastecimento de água e
repletos de miasmas que continham os principais agentes da varíola, malária,
tuberculose e de tantas outras doenças que assolaram as cidades brasileiras da
época.
A República criou um clima de imoralidade justificada, por Carvalho,
pelos altos índices de nascimentos ilegítimos acrescido da baixa dos índices de
nupcialidades, “o pecado popularizou-se, personificou-se.” Houve também uma
mudança nos sentimentos e atitudes da população carioca, ocasionando a quebra
dos valores antigos de moral e honestidade. Carvalho (1987) advoga que a “saída
da figura austera e patriarcal do imperador” fomentou uma sensação de maior
liberdade, sendo assim, “o que antes era feito com descrição [...] para fugir
da vigilância dos olhos imperiais, agora podia ser gritado das janelas”. Nessa
perspectiva, o novo regime estimou os jogos de enriquecimento rápido, como o do
Bicho, de corrida, cassino e as jogatinas da bolsa, estimuladas pela política
do Encilhamento que “trouxe a febre de enriquecimento a todo custo”.
Essa população de “costumes mais soltos” avultava as preocupações das
autoridades que temiam as aglomerações festivas que ocupavam determinadas ruas
da cidade em momentos de festividades. A primeira anomalia social, apontada por
Carvalho (1987), foram os festejos em homenagem à abolição da escravidão que se
perpetuaram durante década na capital. Esses eram dias de intensa prevenção
republicana contra pobres e negros no intuito de congraçar a capital, evitando
arruaças e possíveis distúrbios sociais gerados, sobretudo, por egressos da
escravidão que manifestavam uma reação negativa à República.
Uma das criticas do historiador é em relação à ineficácia dos representantes
republicanos de angariar a simpatia da população pobre ao novo regime político,
especialmente os negros que concebia o Imperador, e sua filha, como o “patrono
da abolição”. Nesse período, havia uma evidente disparidade entre as camadas
menos favorecidas economicamente e a República que deveria organizar outro
pacto de poder que estabilizasse a capital.
O Estado, para a grande maioria, era algo que se recorria, mas que
deveria se manter externo ao cidadão. Não se excluía a necessidade do Estado,
contudo foi estabelecido uma noção de limites do papel deste. Essa concepção,
de acordo com Carvalho (1987), foi o motor da Revolta da Vacina que revelou
antes convicções sobre o que o Estado não podia fazer do que sobre as suas
obrigações. Para Carvalho (1987), a Revolta não negou o estado nem reivindicou
a participação popular nas decisões do governo; ela apenas buscou defender
valores e direitos considerados acima da esfera de intervenção do Estado.
Tal Revolta evidenciou o fracasso da República na definição do
relacionamento entre o Estado e o povo e nas tentativas de mobilizar as massas
dentro dos padrões liberais. Por longas décadas, Estado e povo posicionaram-se
em lados opostos, travando lutas oriundas de representações diferentes de
cidadania. Enquanto o Estado usava a força das armas para combater a “escoria
social”, o povo valia-se de atitudes de completo desrespeito pela lei,
carnavalizando seu relacionamento com o governo mediante manifestações
populares, especialmente durante o carnaval, ou, para os mais
intelectualizados, fazendo uso da impressa, do teatro, etc.
Isto posto, é inegável a visão gradativa usada pelo autor para se referir
ao povo ao longo da obra. A priori, havia o suposto bestializado que viu um
marco histórico da política nacional sem nem atentar para o que estava
acontecendo; segundo temos o povo apático, aquele que adquiriu conhecimento das
mudanças políticas, mas não se interessou pela sua cidadania inativa e manteve
distancia do Estado; logo após temos o povo que ocupa o espaço público para
reivindicar os seus direitos, tendo como ápice a Revolta da Vacina; e por fim,
surge o cidadão malandro, o bilontra que carnavaliza as questões sociais e que
tenta tirar o máximo de proveito de seu relacionamento com o Estado.
Carvalho (1987) termina a obra com a seguinte frase: o povo brasileiro
estava longe de ser bestializado. Era bilontra. Daí surge a seguinte questão: o
povo realmente não assistiu a tudo bestializado? E até que ponto esse cidadão,
por vezes, malandro, gozador era o bilontra na sua relação com o Estado?
Se analisarmos os principais acontecimentos políticos que resultaram nas
mudanças de governo facilmente encontraremos resposta para a primeira questão.
O povo sempre foi excluído dos processos políticos, no Império a Independência
do Brasil, de acordo com Carvalho (2009, p. 26), foi uma “negociação entre a
elite nacional, a coroa portuguesa e a Inglaterra, tendo como figura mediadora
foi o príncipe D. Pedro”. Nesse processo, o povo a “presença do povo não foi
decisiva”, pelo contrário, em algumas “capitanias mais distantes, a notícia da
independência só chegou uns três meses depois”.
A Independência foi uma mudança dentro da ordem, pois não mudou a
condição de vida da população, não aboliu os escravos, não ampliou os direitos
políticos e nem garantiu os direitos civis e sociais da maioria. Apenas trouxe
o critério de renda para a eleição, garantindo os privilégios dos grandes
proprietários rurais que apoiaram o golpe dado por D. Pedro I. O povo nesse
processo? Nada soube, nada fez! Até porque as mudanças políticas não
interferiam diretamente em seu cotidiano; as massas continuaram a manter sua
rotina em busca da sobrevivência, total ou parcialmente alheia aos
acontecimentos políticos.
A República também não trouxe mudanças na vida da população. Esta não
participou ativamente no nascimento do novo regime. Sendo assim, não podemos
deixar de concordar, em parte, com as impressões dos contemporâneos da
proclamação em relação ao posicionamento do povo diante da República.
O povo assistiu a tudo bestializado, mas não permaneceu nesse estado,
especialmente após perceber as vantagens que as mudanças sociais e econômicas,
fermentadas pelo novo regime, fizeram aflorar. Como advogou Carvalho, o povo
buscou desvincular-se dos padrões de moralidade, forjadas pelo Império, criando
meios de se beneficiar do caos econômico, oriundo da mal fadada política do
Encilhamento. Mas é evidente, na leitura de Carvalho, que esse mesmo povo
buscou angariar benefícios, especialmente o enriquecimento rápido, contudo não
aspirou participar das decisões políticas, pelo contrário, até mesmo os poucos
que adquiriram o privilégio de votar evitaram exercer o voto com medo de
represálias.
Se preocupar com o carnaval, com a organização da festa da Penha, mais do
que com desenvolvimento político e as manobras que são utilizadas pelo o Estado
para manter o povo distante das decisões políticas; questionar apenas aquilo
que o Estado não deveria fazer seria mais eficaz do que exigir aquilo que o
Estado deveria fazer, como ampliar o direito político, sociais e econômicos,
não seria uma maneira de se bestializar? De ser estúpido? Alienado?
É esse povo que carnavaliza os acontecimentos políticos, que satiriza as
manobras do Estado, achando graça naquilo que deveria ser um fermento para
buscar mudanças sociais e políticas significativas, são os bilontras da
história? Ou é o Estado, que com sua política do pão e circo, canalizava a
atenção das massas para questões banais enquanto regiam as suas vidas de acordo
com os interesses de uma seleta minoria?
Seria ingenuidade acreditar que o povo não assistiu aos acontecimentos
políticos republicano bestializados, da mesma maneira que seria um equivoco
acreditar que esse mesmo povo continuo bestializado por muito tempo. O grande problema
de Carvalho é não levar em consideração as categorias sociais que estavam
inseridas dentro da sua concepção de povo. De que povo estamos falando? Os
intelectuais que tiveram contato com os ideais europeus de igualdade e
fraternidade ou aquele “pobre mestiço”, na maioria das vezes, egresso da
escravidão que vivia em condições de subsistência? É difícil acreditar que essa
segunda categoria, sem o mínimo de educação formal e lutando constantemente
contra as injustiças sociais, não tenha assistido a tudo bestializado. Carvalho não especifica e acaba por cair nas
armadilhas de um dos vícios historiográficos: a generalização.
Bibliografia
consultada
CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio Janeiro e a
República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
_____________________. Cidadania no Brasil: o longo caminho.
12ª Ed. Rio de Janeiro, 2009.
Muito bom trabalho!
ResponderExcluirNota: 9.0