O
título do livro de José Murilo de Carvalho remete a um ideiário proferido
durante a proclamação da República, que afirmava que o povo assistiu bestializado a mudança de regime. Em
toda a obra o autor traça caminhos que questionam esse paradigma posto como
verdade por vários intelectuais da época. Através de um enorme arcabouço de
fontes das mais diversas, ele narra a história vista na perspectiva do povo
carioca, tentando entender que povo era este, qual seu imaginário político e
qual era sua prática política.
O primeiro capítulo do livro: o Rio de Janeiro e a República vêm apresentar as transformações causadas
pela proclamação da República e pela abolição da escravidão sofridas na cidade.
O autor fala que com a abolição da escravidão altera-se o número de habitantes,
engrossando a quantidade de mão-de-obra livre e de subempregos. Há também uma
intensa entrada de imigrantes europeus, de vários lugares da Europa que aumentaria
este contingente de homens livres. O Rio de Janeiro torna-se bastante
heterogêneo, portando de uma população muito diversificada e fragmentada, não
podendo ser tomada como uma grande massa formadora de um único bloco
homogeneizante. José Murilo de Carvalho
coloca também que houve alterações físicas na capital, como o crescimento
irregular, a falta de habitações, de saneamento básico e de abastecimento de
água acarretando em um surto de epidemias que assolavam a cidade.
Proclamada a República, a população
pobre, atraída pelos florianistas, se embevece de certa esperança, havendo um
entusiasmo para novas possibilidades de participação política. Porém, rechaçada,
ela mantêm sua admiração e simpatia pela Monarquia, e como é muito bem apontado
pelo autor, há uma reação negativa da população a algumas medidas
administrativas da República, coferindo, assim, uma antipatia do povo ao novo
regime. Vale dizer que essa reação popular a medidas da República não acontece
de forma unitária, conjunta, pois a população carioca era bastante
diversificada desencadeando, assim, em uma participação política heterogênea. José
Murilo de Carvalho afirma que não havia entre ela um sentimento de
pertencimento a uma comunidade coletiva e de tão fragmentada, a população se isolava
em diversos grupos, formando repúblicas menores, onde criavam suas próprias
leis. Isso pode ser percebido ainda hoje como ressonâncias desse passado,
principalmente quando se olha para as grandes favelas do Rio, que são
verdadeiras micro-repúblicas onde há um isolamento da população marginalizada
em relação à política nacional.
Portanto, o autor tenta neste
capítulo demonstrar a situação de instabilidade em que se encontrava o Rio para
dizer que a população pobre, mesmo excluída, procurou criar estratégias de
sobrevivência a medidas de supressão atribuídas ao governo, através de
festividades coletivas, que posteriormente seriam incorporadas à elite.
Já no segundo capítulo denominado República e Cidadania, José Murilo de
Carvalho coloca que para a implantação da República no Brasil houve uma luta
ideológica entre várias correntes, aquilo que Sérgio Porto chamaria de “maxixe
do republicano doido”. O que ocorre, na realidade é uma confusão de ideias
deixando bastante complexo e peculiar o republicanismo brasileiro.
O que o historiador coloca para os
leitores nesse capítulo é a atuação política da população que lutavam para a ampliação
de seus direitos, pois com a transição da Monarquia para a República, esta teve
seus direitos minimizados. Assim, foi dada a cidadania apenas para aqueles
homens alfabetizados, excluindo a maioria da população carioca do direito de
voto e de ação política pelos meios oficiais. Havia uma distinção nítida na
sociedade carioca, o que o autor coloca como cidadãos ativos e os inativos.
No decorrer do capítulo, José Murilo
vai traçando as várias concepções de cidadania proferidas pelas diversas
correntes ideológicas, apontando minuciosamente suas propostas. O que
despertava certa expectativa das camadas populares foram as propostas
democratizantes feitas por alguns republicanos radicais como Silva e Jardim,
porém, ao final da batalha ideológica, a elite civil republicana sai vitoriosa,
frustrando, assim, as perspectivas das camadas populares. O autor aponta que a
reação desses excluídos foi a criação do sistema de Estadania que seria a participação na política, não através de uma
organização de interesses conjuntos desses populares, mais a promoção de um
contato direto com a máquina governamental. Ou seja, o problema da cidadania
foi resolvido através de um sistema paternalista de troca de favores entre
setores das camadas populares e a máquina governamental. Esse costume
paternalista, que ainda está arraigado fortemente à cultura brasileira -
principalmente quando falamos de cultura política - faz parte de nossa uma
herança colonial e do tradicionalismo que ainda ressoa na mentalidade da
população do país.
Logo, a ideia de que não existe
cidadão no Rio de Janeiro, relatada por vários intelectuais, só confere quando
se fala nos meios legais, pois a atuação política da população se dá por trás dos
meios oficiais, tentando exercer sua cidadania a qualquer custo, mesmo que seja
através da violência. O historiador fala em um Rio subterrâneo, que se liga umbilicalmente
ao Rio oficial, da superfície.
No terceiro capítulo do livro, “Cidadãos inativos: a abstenção eleitoral”,
José Murilo de Carvalho vai apontar as opiniões de vários estrangeiros e
brasileiros que convergem sobre a ideia da suposta apatia do povo carioca após
a proclamação. Para estes intelectuais não havia um povo político, e nem
cidadãos no Rio, e a política seria assunto da elite dominante. Mas que povo e
que cidadão era este que era buscado por eles?
Como foi falado pelo autor, toda a parafernália institucional do Brasil foi
importada tanto da Europa quanto dos EUA e com ela também foram transplantados
para cá os conceitos de República, Povo e Cidadão. Portanto, a meu ver, não se
pode atribuir essas ideias à população carioca e nem esperar que esta se
encaixe nesses modelos, pois acredito que seja necessário que se leve em
consideração o contexto de cada país.
Entre os “cidadãos inativos” que
compunha a “massa” popular carioca estavam os imigrantes, que, durante o início
do século XX, vieram alimentar o contingente do proletariado da cidade. Eles
tiveram grande importância para a vida política do Rio, pois até 1904
participaram ativamente das greves e revoltas contra medidas do governo. O
autor ressalta a presença dos portugueses na cidade - maioria dos imigrantes –
que despertaram intensa lusofobia dos nativos cariocas (repulsa herdada desde o
início do século XIX), pois detinham o poder de alguns empregos e subempregos
na cidade.
O que é interessante frisar nesse capítulo
é que José Murilo coloca que até mesmo os eleitores se abstinham do voto, e o
argumento utilizado por ele para justificar a auto-exclusão destes foi o de que
as eleições eram muito bagunçadas e ineficientes, sendo assim, inútil votar,
além de ser muito perigoso. O autor trabalha em todo livro com essa ideia de
que a República é uma bagunça e que principalmente durante esse primeiro
momento ela estava inserida em plena desordem. Acredito que seu argumento sobre
a República seja além de bastante pessimista e talvez um pouco exagerado, o
autor procura reproduzir um discurso construído pelos ideólogos dos regimes
autoritários instituídos no Brasil (“Estado Novo” e o “Regime Militar”) sem
propor a desnaturalização desse discurso a partir de uma análise profunda do
mesmo. É partindo desse pressuposto de desordem republicana que ele vai
concluir o livro com a seguinte tese: o povo que se absteve de atuação política
o fez porque sabia que a República não era “para valer”, sendo chamado por José
Murilo, de bilontra (esperto), e bestializado era aquele que levava a política
a sério, o que se prestava à manipulação. O autor, então, conclui o livro
afirmando que o “povo” carioca era bilontra, como se este tivesse se afastado
da política oficial por opção própria.
Continuando a explanação dos
capítulos do livro, o quarto capítulo intitulado: “Cidadãos ativos: a Revolta da Vacina” tem a intenção de
exemplificar a atuação política desses “cidadãos inativos” partindo desta
revolta. O autor aponta no capítulo que a revolta da população não é apenas justificada
pela obrigatoriedade da vacina, pois esta já era obrigatória há certo tempo,
mas sim pelo conjunto de medidas implementadas pelo governo para que houvesse a
higienização e modernização da cidade. Porém, o que é colocado no texto é que a
oposição à vacina feita pelo povo vai ganhando um caráter moralista, e que foi
por isto que as mobilizações populares de 1904 obtiveram as suas proporções.
Não concordo com a posição do autor frente a este argumento, penso que as
camadas populares tinham outros motivos além dos morais para que fosse
desencadeada essa grande revolta. Sei que não se deve esquecer-se da forte
herança tradicional ibérica e escravista imbuída na mentalidade dessa sociedade
carioca, mas penso que este argumento é simplista e desatencioso para com a
população pobre que reivindicava melhores condições de vida, além de não se
aprofundar nos problemas sociais que haviam na época.
Contudo, como foi bem apontado pelo
historiador, não se pode afirmar que houve uma convergência de interesses por
parte desses populares ao proferirem a revolta, pois espelhando à própria
população, a revolta assumiu um caráter bastante heterogêneo, com cada grupo de
revoltosos lutando a favor de seus próprios interesses. José Murilo ressalta
que foi exatamente por causa da falta de comunhão dos interesses e pela
desorganização das mobilizações que esta revolta fracassou, comparando-a com
ações políticas clássicas, como as rebeliões parisienses do século XIX. Penso
que não se pode comparar revoltas com intenções tão diversas, além de que se
deve levar em consideração os diferentes contextos históricos, políticos,
econômicos, sociais e culturais de cada país. O que dá impressão é que o autor
percebe as mobilizações políticas clássicas europeias como um modelo, e como se
os populares cariocas reproduziram este arquétipo, sendo mobilizados pelos
intelectuais, como se eles precisassem de uma ideologia para fundamentar suas
atitudes políticas.
No último capítulo do livro, “Bestializados ou bilontras?”, José
Murilo vai concluir o livro com o argumento as mobilizações políticas da
população tinham um caráter desorganizado, fragmentado e defensivo. Além de ter
em mente os moldes das rebeliões clássicas, o historiador exige dos populares
uma consciência política e plena noções de cidadania, sem levar em consideração
o pouco tempo de vivência desse regime republicano, e como ele mesmo colocou o
recente tratamento de súdito que era atribuído à população. Ou seja, em poucos
anos a sociedade carioca deixa de ser súdita e passa a ser cidadã, porém na
mentalidade da mesma permeiam as duas categorias, ocorrendo, assim um
hibridismo entre o tradicional e o moderno. Como afirma o autor, há um forte
peso da tradição escravista e colonial no imaginário desta população que
dificulta a transição para o desenvolvimento ideológico do liberalismo burguês,
isto é, no Rio há uma mistura entre o antigo e o moderno. Esta mistura de valores,
José Murilo afirma ainda que, esta “duplicidade de mundos” que compõem a
mentalidade desse povo talvez tenha contribuído para a constituição da mentalidade
de irreverência e de malícia dos cariocas, que foram postos como bilontra por
não terem interesse em participar da política oficial.
Se tratando
da tese do livro, não concordo com o argumento do autor, e a partir da leitura
não percebo os populares nem como bestializados e nem como bilontras. Acredito
estes povos agiram politicamente por melhores condições de vida e praticaram
sua cidadania como podiam, mesmo que não oficialmente, através de revoltas,
greves ou mesmo pelas festividades populares, exigindo liberdade de expressão.
Além disso, não creio que as decisões políticas sejam tratadas com tanta falta
de interesse pela população como foi pregado pelo autor quando chamou a chamou
de bilontra, pois se não houvesse interesse também não haveria mobilização. Logo,
para mim, as camadas populares não são nem bilontras nem ficaram bestializados.
Enfim, “Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a
República que não foi” faz uma ótima explanação da situação vivenciada no
início da República, propondo um olhar para os excluídos politicamente, e
procurando demonstrar as origens da cultura política republicana. Com uma
escrita bem simples, José Murilo de Carvalho nos leva a questionar nossas
atitudes políticas a partir de suas opiniões sobre as mobilizações do povo
carioca. Utilizando-se de uma vasta composição de fonte, incluindo a literária,
o historiador nos transporta para as cenas que narra, fazendo a leitura do
livro ser muito instigante.
Bom trabalho, com jeitão de fichamento. NOta: 8.0
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